O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.
As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada ante o sabor da morte e do apagamento.
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança. «Morreu ontem», respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida."
— Fernando Pessoa, por Bernardo Soares, no livro "Livro do Desassossego". (Vol. I / Editora Brasiliense; 1.ª edição [1989]).
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio (...) Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim (...)
s. d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição
dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do
Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982: 323
¡Nostalgia! La tengo hasta de lo que nada tuvo que ver conmigo, por una angustia causada por la fuga del tiempo y una enfermedad del misterio de la vida.
"Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objecto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem."
De algemeenheid is een thuis. Het alledaagse is moederlijk. Na een lange tocht door de grote poëzie, in de bergen van de ultieme inspiratie, op de klippen van het transcendente en occulte, doet het meer dan goed, smaakt het naar alles wat warm is in het leven, om terug te keren naar de uitspanning waar de gelukkig onnozelen lachen, en met hen het glas te heffen, eveneens onnozel zoals God ons heeft geschapen, tevreden met het universum dat ons werd gegeven en wat er méér is overlatend aan hen die bergen beklimmen om in de hoogte niets te doen.
Fernando Pessoa (Het Boek der Rusteloosheid, p. 85)