{Resenha do Livro} Pessoas Normais, de Sally Rooney
Pessoas Normais
Autora: Sally Rooney
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 264
O gênero literário denominado "Young Adult" ou "Jovem Adulto" para quem já conhece, é marcado por narrativas com personagens jovens, vivendo ainda no colegial; ou em etapa de transição para a fase adulta, e consequentemente para o mundo universitário. Nessas obras podemos ver com frequência temáticas como os primeiros relacionamentos amorosos, as dificuldades da vida escolar, o bullying, o sexo, drogas, ou temáticas sobre depressão, e até mesmo o luto.
Pessoas Normais, obra de Sally Rooney segue as mesmas temáticas esperadas, porém de maneira surpreendente a autora vai um pouco além de tudo que já estamos acostumados a ler.
Baseado em dois personagens adolescentes que convivem na mesma escola, Marianne é uma jovem de família rica oriunda da Irlanda, conhecida por não ser uma das pessoas mais populares da vizinhança. Tratada como a própria escória entre os colegas de classe, Marianne é uma garota solitária que nasce deslocada com seu comportamento diferente das pessoas de sua idade.
Connell, aparentemente o oposto de Marianne, é um jovem sem muitos recursos financeiros que vive como um garoto normal; se divertindo com os amigos da turma, jogando no time de futebol da escola e dormindo com garotas do seu círculo de amizades. Além das diferenças sociais, a mãe de Connell é empregada na casa de Marianne, e é lá que os dois se encontram na maior parte do tempo quando estão fora da escola. Ao contrário do que acontece no ambiente escolar, Marianne e Connel trocam conversas durante as visitas dele em sua casa. E assim, se aproximando cada vez mais, os dois começam um intenso relacionamento amoroso.
“Quando conversa com Marianne, ele tem uma sensação de completa privacidade. Poderia contar qualquer coisa a seu respeito, até as coisas estranhas, e ela jamais as repetiria, ele sabe. Estar sozinho com ela é como abrir uma porta para fora da vida normal e fechá-la depois de passar.”
Mas a relação dos dois é apenas desenvolvida de maneira privada, pois Connell deixa claro para Marianne que não consegue expor seu envolvimento na frente dos amigos; devido a aversão que todos demonstram ter sobre ela. De modo estranhamente resignado, Marianne parece não se importar com essas condições, já que a única pessoa que realmente deseja sua companhia é Connell, contrapondo até mesmo a sua família, na qual tem uma relação conturbada e de extrema indiferença por parte de sua mãe e seu irmão mais velho.
Antes que termine o ano escolar, Marianne se afasta de Connell e os dois seguem sem contato um com o outro pra uma nova etapa de suas vidas: a universidade. Mesmo com as reviravoltas, os dois vão para a mesma universidade de Trinity, estudando em cursos diferentes. Ao reencontrar Marianne, Connell não poderia estar mais mudado, e para sua surpresa Marianne também. Agora em um ambiente intimidante de pessoas da alta classe social, Connell vive à margem das festas e amigos da fraternidade. Ele está mais solitário do que nunca, ao contrário de Marianne, que parece ter encontrado novas amizades e pessoas que se interessam em estar perto dela, sem se importar com seu passado, apenas pelas convenções econômicas.
O passado não consegue apagar de qualquer forma a forte conexão que os dois protagonistas tem um com o outro, e os dois permanecem se reencontrando; ora apenas como amigos, ora como parceiros da mesma cama. Entretanto, o relacionamento dos dois nunca consegue avançar para algo maior, pois os dois convivem com semelhantes problemas emocionais, sem saber como lidar com suas próprias identidades e escolhas.
"Ficar sozinho com ela é como abrir uma porta para além da vida normal e fechar essa porta ao sair. Ele não tem medo dela. Na verdade, ela é uma pessoa bem tranquila, mas ele tem medo de ficar perto dela por causa do jeito confuso como ele se comporta, as coisas que ele diz que ele nunca diria normalmente."
Sally demonstra de maneira inquietante e dolorosa como a maioria dos relacionamentos da atualidade são problemáticos pela falta de comunicação. Quase sempre tentando ocultar o que se sente para alguém, esses personagens se perdem dentro de si mesmos, apenas por medo de se expor ou por inabilidade de convívio social. Tudo seria mais fácil para Marianne se a mesma pudesse colocar pra fora seus piores sentimentos, enraizados na violência que vivenciou entre seus pais, e os constantes abusos psicológicos e físicos causados por seu irmão. Connell mesmo possuindo boas experiências familiares, também reluta em procurar ajuda para lidar com sua própria mente, tomando sempre atitudes questionáveis por não saber lidar com a ansiedade.
Boa parte da história me senti incomodada com o comportamento da personagem Marianne, a mesma é uma garota reconhecidamente inteligente, com fortes opiniões politicas e grande potencial, mas ao mesmo tempo tão desgastada emocionalmente que sempre coloca-se de uma maneira vulnerável sob o domínio de relações abusivas, deixando até mesmo alguns namorados a controlarem fisicamente de maneira violenta. Não consegui não sentir empatia pela personagem, pois a mesma é retratada como uma pessoa autodestrutiva, que de tanto ouvir que era alguém inferior acredita com veemência em sua insignificância.
"Existe nela algo de amedrontador, um enorme vazio no fosso de seu ser. É como esperar o elevador chegar e quando as portas se abrem não há nada, somente o terrível vácuo negro do poço do elevador, eternamente. Falta a ela um instinto primitivo, autodefesa ou autopreservação, que torna os outros seres humanos compreensíveis. Você se escora esperando resistência e tudo se dissolve bem na sua frente."
De qualquer maneira não é fácil ler o que se passa com a personagem, pois o tempo todo suas dores nos deixam inquietos e apreensivos. Mesmo entendendo os motivos de todos os problemas retratados, talvez seja difícil pra algumas pessoas se deixar aprofundar na trama. Eu mesma me identifiquei com muito do que se passava com os personagens, pois seus anseios e dores eram muito reais. Talvez não recomendaria essa leitura para alguém que estivesse procurando ajuda emocional ou psicológica, pois a mesma poderia ter alguns gatilhos. Porém, essa é de certeza uma obra que nos faz refletir sobre a vida e os relacionamentos ao nosso redor. Para conseguir nos impactar a autora utiliza de franqueza e dolorosa sensibilidade.
Retrata como é tênue a linha que separa as amizades e relacionamentos amorosos, com as afirmações de poder entre os indivíduos da sociedade. É fácil deixar alguém ter poder sobre você mesmo durante as relações sociais ditas como normais, esse poder pode ser prejudicial como os abusos físicos que Marianne se deixava submeter; ou até mesmo o domínio psicológico causado pelo poder que as amizades e a satisfação de pertencimento a um grupo social causavam em Connell; e até mesmo em determinado momento, em Marianne.
"Na escola, se acreditava estar acima das trocas sinceras de capital social, mas sua vida de universitária revelava que se alguém da escola tivesse se disposto a falar com ela, ela teria se comportado tão mal quanto todo mundo."
Estranhamente me surpreendi ao final do livro, como a autora demonstra que essas relações de poder são em certos casos até necessárias e inerentes a todo ser humano, pois até mesmo as pessoas que você ama tem certo poder sobre você, e todas as pessoas que te amam também serão de alguma forma influenciadas por você. É necessário que aja uma reflexão sobre quais dessas influências que estamos submetidos nos faz bem ou não.
Confesso que ainda estou digerindo esse livro, e não foi fácil engolir toda sua carga emocional, mas com certeza me segurou de um jeito que eu não conseguia largar até chegar ao final. Essa não é de longe uma história de amor idealizada, que todo mundo gostaria de viver, mas pode ser considerada uma história de amor realista, mostrando pontos negativos e positivos, sem esconder os defeitos e as qualidades de seus personagens.
Sally Rooney demonstra através de uma narrativa crua e peculiar, e estranhamente desconcertante e sensível, como é possível ter uma conexão com alguém que nos leva a descobrir quem realmente somos.
“A maioria das pessoas viveriam suas vidas inteiras, Marianne pensou, sem nunca se sentirem tão próximas de alguém.”
Mesmo tentando agradar as pessoas ao seu redor, Connell não consegue fingir quando está com Marianne. Quando os dois estão juntos, conseguem entender e simplesmente ser a sua face mais verdadeira como pessoas. E não é fácil encontrar perante o mundo, a possibilidade de ser você mesmo com alguém. Não é fácil descobrir quem você realmente é, muito menos compartilhar isso com os outros ou conseguir aceitar a si mesmo.
Aos poucos, nossos personagens vão enfrentando suas próprias jornadas pra alcançar esse objetivo. Uma jornada constante, que talvez leve a vida inteira pra ser sincera. Mas ainda assim é possível ver essa transição ao final do livro, e isso me deixou satisfeita. Creio que esse livro é o tipo de obra que deixará aqueles que a lerem mais cientes de sua própria jornada de identidade. Ou poderão ao menos se convencer de que ser humano, imperfeito ou complexo, é ser uma pessoa normal.
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