Confissão de um assassinato
Como ela é linda, atraente, faz tempo que não a observava nesse ângulo. Olha essa altura, esplêndida! No seu pico, o símbolo da fé. Nas alturas, tão próxima do céu, nas nuvens: parece nos olhar, esquadrinhar. Todos os passantes aqui em baixo, com seus pecados, segredos, orgulhos; hipócritas! Alguns passam sem notá-la, acostumaram-se com esse monumento gigantesco e colossal, outros, tiram fotos, os mais crentes fazem o sinal da cruz, tem que ter respeito, afinal, os olhos atentos estão lá em cima, observando-nos.
Depois de um tempo, não notei o quanto, olhando esse símbolo da cidade, sua simetria cônica, maior da América Latina, senti desejo de entrar. Na verdade, começo a pensar que meus pés me trouxeram aqui de propósito. Precisava respirar um ar menos pesado, não havia pensado em uma igreja, agora, talvez, faça sentido, comecei a me sentir melhor no seu interior.
Dentro, uma verdadeira obra de arte, gravuras nas paredes, janelas em mosaicos, tudo soava a redenção. O silêncio era o melhor, parecia que todo o barulho do mundo parava na porta. Pairava no ar uma áurea, não sei, um tanto fúnebre, saudosista. Todo esse ambiente me trouxe uma paz nunca sentida. No entanto, me veio à cabeça o motivo que talvez me trouxe aqui, uma culpa que me martelava os sentidos a meses.
Minha esposa, Maria, morreu há dois anos em um assalto; o assassino, um garoto problemático do bairro, ficou menos de um ano internado, pois era menor. Na verdade, ela poderia ser salva, os médicos disseram que se o socorro tivesse chegado antes, o quadro seria outro. Pois é, lá no bairro acontece isso às vezes, é descaso com os pobres, se fosse num bairro de rico, o socorro chegaria rápido.
Na parede ao lado, em uma gravura, aparece Jesus sendo chicoteado carregando uma cruz. Olhei com raiva, senti um desejo de ajudá-lo, espancar quem o castigava. Por que tem que ser assim? Os humildes, os pobres, com boas intenções, são sempre castigados. Aquele garoto, que guardei tanto rancor, é outra vítima desse sistema sujo. Mas, como tudo que se faz tem sua pena, achei injusto aquele assassino matá-la como um animal e não ser punido.
Aproximei-me do altar, as imagens, Jesus, os anjos, pareciam me observar. Eu estava começando a me sentir um intruso. Queria falar com Deus sobre meus pecados, tirar esse peso, não só meu, mas da raça humana, que por ser humano, carrego desde quando cheguei a esse mundo corrupto. Sentei no banco de madeira, olhei em volta, comecei a mastigar uma prece. Do outro lado, havia um rapaz, com o boné nas mãos, suava na testa, mexia os lábios freneticamente, parecia nervoso. Quando percebeu que eu o fitava, fechou a cara e se levantou, ficou mais alguns instantes olhando a imagem de Jesus, e saiu.
Com exceção de uma velhinha no fundo que não se mexia, e um casal que tirava fotos de tudo, eu estava sozinho na igreja. O silêncio, que antes era total, começou a vir em meus ouvidos uns zumbidos, uma espécie de murmúrio, preces veladas. Olhei nas galerias acima, pensei estar vindo de lá. Voltei para meus pensamentos.
Ajoelhei, muito sem jeito, não estava acostumado. Senhor…Bom…o Senhor sabe porque estou aqui…Oh meu Deus, como fazer isso!
O assassino, como eu disse, era menor. Alguns meses depois ele completou maioridade, e menos de um ano, estava na rua, com uma tornozeleira. Eu fiquei com muito ódio dele. Amava minha esposa, fazíamos, naquele ano, 20 anos de casados. Nossa filha, Catarina, se fechou para o mundo desde então. A justiça da terra falhou, a de Deus, bom, é com ele, não vi resultado. Resolvi então dar fim no assassino de minha mulher.
As imagens, pareciam ouvir meus pensamentos, me cercavam com seus olhares acusadores. Na cruz no altar, o Cristo me olhava com ternura, mas ao mesmo tempo, censura. “Aparta-se de mim malfeitores”.
Desta forma, com a ideia formada na cabeça, comecei a pô-la em prática. Comprei uma arma, isso foi o mais fácil, qualquer esquina se compra uma. Como sabia quem era o sujeito, só precisei de paciência para seguir todos seus passos e rotina. O rapaz não trabalhava, morava com uma tia, ele a agredia, ameaçava, e a mulher era obrigada a trabalhar para sustentá-lo. Todos os dias, por volta das 18h00, o assassino frequentava um bar, bebia e jogava baralho até horas mortas. Foi aí que vi uma brecha.
Em um sábado, já pelas dez e pouco da noite, resolvi dar cabo ao plano, carreguei o revólver, fumei um cigarro, tomei um copo de cachaça; eu não bebia, foi para dar coragem. Marchei ruma ao bar, meio trôpego, olhar um tanto turvo, acho que exagerei na bebida. Chegando ao bar notei que estava mais cheio que de costume; avistei o assassino, bebia, fumava e jogava. Arrumei a arma na cintura, o aço gelado, dava-me calafrios. Pedi um refrigerante.
Fiquei em pé, encostado no balcão. Suava frio, sentia minha pressão cair lentamente. Evitava olhar diretamente para o sujeito. Ele, muito safo, falava com muita gente, mexia com as mulheres, bebia, dançava. Depois de uma partida de baralho, o assassino, chamado por Perneta, por ter uma perna manca, começou uma discussão, briga de jogo. Alguns empurrões, desferiu um murro no rosto do seu desafeto, recebeu outro, e ficou por isso. Acabou o jogo, o dono do bar expulsou todos, ameaçou chamar “os homi”.
No meio da balbúrdia, xingamentos, saíamos todos. Perneta, branco e fino igual uma folha de papel, já muito vermelho de bebida, saiu abraçado com uma moça, igualmente bêbada; desceram pela rua Paraíso, muito escura e sem asfalto. Eu o observava, esperando o momento certo, desci atrás. Ergui o capuz, com as mãos trêmulas, coração batendo tão forte que parecia explodir. A rua deserta; ameacei sacar o revólver, o cão enroscou na minha cinta. Limpei a testa do suor, respirei fundo, olhei para os dois caminhando em zig-zag. Essa era a hora! Saquei a arma! Mirei, nas sombras, para meu alvo, tremia igual vara verde. Chamei-o, queria que me visse, quando ele virou, um homem saiu de baixo de uma árvore, e pelas suas costas, desferiu duas facadas abaixo das suas costelas, fazendo-o uivar de dor.
Saí correndo da cena do crime, ninguém viu meu rosto, não vi o assassino que chegara na minha frente, e a moça ficou congelada olhando tudo, atônita. Dias depois, Perneta morreu no hospital, seu assassino, permaneceu foragido. Li tudo no Jornal do Povo.
Levantei, estava zonzo de ficar tanto tempo de joelhos. Os zumbidos, outrora mais tímidos, pareciam mais altos, nervosos, preces, murmúrios, sem nexo, palavras incompreensíveis; no meio dessa zoada, uma palavra entendi: culpado!
Olhei dos lados, não havia ninguém, só do outro lado, pela porta principal, chegavam alguns fiéis, todos muito bem vestidos, rostos lívidos, ar cândido; pareciam carregar o próprio cristo nos braços.
Eu não sei se teria coragem, acho que nunca saberei! Mas, uma coisa é certa, a intenção sempre existiu. O que não me torna menos culpado. Afinal, quem é inocente? Só Jesus. Esse me olhava com repressão lá de cima. Um ser humano desprezível, assim como todos os outros. Nunca procurou a igreja, agora, quando está aflito, procura redenção!
O sangue daquele homem está nas minhas mãos, isso não me sai da cabeça! E o que me deixa com sentimento maior de culpa é que não me senti vingado. Queria eu, eu! Quem o tiraria desse mundo, igual ele fez com minha mulher. Mas, na hora, penso que titubearia. Talvez assim o desfecho fique melhor; sempre há alguém mais corajoso.
Olhei com olhar molhado para o altar, para as paredes, para cima, ao telhado em forma de funil. Lá no alto, no pico, escuro, parecia uma entrada para o paraíso, distante, silenciosa; porém, para mim, aparecia sem luz, com um espaço apertado, difícil de entrar. Quando baixei a visão, as imagens, muito reais, pareciam se mover; o Cristo, já não olhava para mim. Os anjos, com olhar severo, me expeliam daquele lugar santo. Eu era um pária. Eu havia rompido o limite, a linha tênue, que separa os santos dos impuros. Aquela santidade toda era demais para mim. Era preciso me retirar com o peso da minha impureza, para sobrar espaço para a santidade dos fiéis que desfilavam com sua leveza de querubim invejável.
Sai daquele lugar, que quando na entrada, me sentia bem, agora, saí quase a ponta pé pelas divindades e olhar dos santos que entravam aos poucos para o seu lar. Suava dos pés à cabeça. O sol castigava a terra com seu calor, e a mim, parecia destinar seu calor mais infernal.
Já na rua, contemplava com olhar triste aquele lugar lindo, motivo de orgulho da cidade, forma de cone, alto e…. inalcançável. Era mais um lugar estranho. Antes de partir, dei mais uma olhada por cima do ombro, sorri. Pensei em fazer o sinal da cruz, não fiz… Assim seja.
Gilson Soares
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