Tumgik
worldwidesuicide-sims · 6 months
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Capítulo 6 - Telescope Eyes
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(narrado por Ryuko)
Desde que comecei a ensaiar toda semana com o Daniel e o Paul, eu sinto que comecei a ficar menos ansiosa com a questão de entrosamento no colégio. Eu ainda não me entrosei totalmente com os colegas, mas tenho me empenhado tanto nos ensaios, e no festival da canção, que essa questão só não tem sido mais tão fundamental. Além disso, a essa altura do ano, já consigo ver o pessoal como amigos com quem posso contar para encarar a vida escolar junto. Fazemos os trabalhos sempre juntos, estudamos para as provas juntos, e também passeamos juntos toda semana. Até mesmo recentemente, que sentimos algumas tensões rolando entre o Paul e o Levy, eu ainda me sinto segura quando estou junto com todos, e não sinto nenhuma hostilidade. Acho que isso era tudo que eu precisava para conseguir encarar um novo colégio, depois de ter passado toda a vida na escola japonesa, e é isso que também me torna capaz de conseguir focar em um projeto tão engenhoso que é tocar em uma banda sem sentir tanta ansiedade e preocupação.
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O festival da canção vai acontecer essa semana, o que significa que aumentamos o número de ensaios: como a apresentação será na sexta, essa semana iremos ensaiar na terça e na quarta, e Daniel ainda queria ensaiar também na quinta. Falei que era melhor que os meninos relaxassem na quinta, porque já está super perceptível o cansaço do Paul e a ansiedade do Daniel. Argumentei que Paul precisava descansar a voz, e acho que esse foi o argumento vencedor.
A maior parte do tempo, eu só me sinto muito imersa nos nossos ensaios, especialmente porque não tenho bateria na minha casa. Ter como ensaiar apenas no colégio faz com que eu passe muito mais tempo lá do que eu passaria normalmente. Meus pais ainda não conheceram meus amigos, e acho que eles ficariam muito decepcionados de saberem que me inscrevi para tocar bateria em um festival de “música ocidental”, como eles diriam. Por conta disso, nem mencionei nada para eles. Eu também não tenho espaço na minha casa para ter uma bateria, então achei melhor realmente não esquentar a cabeça.
Naturalmente, o que eu mais estou preocupada neste momento é com a minha performance no meu instrumento. Paul também parece extremamente preocupado com sua capacidade vocal e com sua aparência, já que ele sente que será a “cara principal” da nossa apresentação (estranhamente, ele não se sente nem um pouco preocupado com a performance dele tocando baixo elétrico. E ele realmente toca muito bem sem precisar fazer nenhum esforço). Já o Daniel, bem… Quando ele explicou, eu consegui entender por que isso era uma questão para ele. Mas, analisando com calma, acho que é mais um problema de falta de comunicação. Apesar de que alguns eventos da semana passada me deixaram com um pouco de dúvida se é só isso mesmo…
Daniel contou na última sexta que é “uma questão de honra” ter uma colocação melhor no festival do que a do Clube de Música de Copperdale, o do nosso colégio. Conversamos isso enquanto estávamos dando uma pausa, na sala de música. Todos estávamos lá: eu, os meninos, Gabi e Levy. Era, inclusive, a primeira vez que estávamos vendo o Levy depois de um longo período.
- Eu não acho que a gente vai levar essa, Daniel - comentou Paul, com um misto de impaciência com preocupação.
- Mas a gente não precisa ganhar. Qual é, você realmente acha que eles vão ganhar assim? Só porque são do tal clube? Isso seria roubado demais! - Retrucou Daniel.
- Eu acho que eles vão ganhar o festival justamente por serem do Clube de Música. Eu simplesmente não acho crível que seja um festival justo. Até agora não informaram se vai ter votação popular, se vai ter um júri… Você não acha isso minimamente estranho?
- Acho eles desorganizados, lógico, mas não acho que uma coisa implique na outra não. Não tem nada ganho ainda!
- Ai, meninos, vocês acham muitas coisas pelo visto, né? Que tal tirar as dúvidas de vocês com o professor de música, já que ele é quem está organizando o festival? - disse Gabi, impaciente.
- A Gabi tem razão - respondi. - Se vocês não quiserem conversar com o professor por causa daquela briga com a Scarlet, eu posso ir lá falar com ele sem problemas.
- Se eu já não quero ficar trombando com os mauricinhos do clube, imagine você se eu quero topar por aí com a Scarlet. Fica à vontade então - respondeu Daniel, se afundando na cadeira com sua guitarra.
Eu também não me sinto confortável tendo que lidar com a Scarlet. Durante todos esses meses desde que viemos estudar aqui, é ela a pessoa que torna a minha estadia sempre um pouco mais difícil do que poderia estar sendo. Eu sabia que, se eu fosse conversar com o professor de música, por causa do jeito legalista dele, ele entraria no assunto sobre a briga e me faria ir lá com o Daniel e o Paul pedir desculpas a ela na frente dele. E, mesmo que eu não goste de me meter em conflitos, eu acharia isso tudo muito ridículo. Já não somos mais crianças, não precisamos mais passar por esse tipo de coisa, certo?
Bem, acabou que o destino me agraciou com essa tomada de decisão um pouco mais cedo do que eu gostaria. Quando eu cheguei na sala dos professores depois do nosso ensaio, lá estava ela, conversando qualquer coisa que fosse com o professor de música. E o pior de tudo é que parecia ser uma conversa séria - alguma coisa havia sumido da sala de música, ou havia sido modificada. Não consegui entender 100%. Até porque, a conversa foi interrompida assim que eu apareci:
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- Ah, é você, Ryuko! - Disse o professor, sorridente - Precisa resolver algum último agendamento antes do festival?
Scarlet me olhava de cima a baixo, me fitando com uma certa raiva, que eu até então não sabia de onde vinha.
- Não, não, eu só queria tirar algumas dúvidas mesmo, os agendamentos da sala de música estão ok…
Conversei com o professor com a presença incômoda de Scarlet ao nosso lado o tempo todo, o que acabou me deixando sem jeito para falar direito com o professor, e me distraindo muitas vezes enquanto pedia as informações sobre a premiação. Consegui captar que seria feita uma média entre a votação de um júri de professores do colégio e a votação popular dos alunos e funcionários. Mas as demais informações ficaram bagunçadas na minha cabeça, já que eu não conseguia me concentrar tendo o olhar constante da Scarlet sobre mim.
Me despedi do professor, mandei SMS para o pessoal falando sobre a premiação e, de repente, fui interpelada por Scarlet no ponto do ônibus que levava até a estação de trem.
- Você mora em Komorebi mesmo, japinha? - Ela perguntou, sorrindo pra mim de forma debochada.
- Não gosto que me chamem assim. - Tentei ser o mais objetiva e seca que eu poderia, especialmente depois do episódio no meu armário.
- É que eu não costumo guardar nome de gente que não é importante, hahahaha, sabe como é…
- Não, não sei.
- Não te perguntei. - Scarlet me empurrou na parede de vidro do ponto - Você tem respostinha demais pro meu gosto.
Senti pânico, e já não conseguia mais dizer nada. Apenas tive a sensação latente de que já tinha vivido algo quase igual antes.
- Olha só - ela continuou - Não tô gostando disso de você estar tão próxima do Paul Hent. Você acabou de sair do seu mundinho nipônico pra cá, e tem que se colocar no seu lugar. Quem você acha que é? Com essas roupas horrendas, esse cabelinho ridículo tentando se fazer de menina inocente, se aproximando de quem EU tenho interesse?
- M-mas eu nunca nem t-te vi c-conversando com ele…
- NÃO IMPORTA. Fica difícil conversar com ele quando tem gente no meu caminho. E a gentinha da vez é você. Não se coloque no meu caminho.
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Scarlet me empurrou para dentro do ônibus, que havia acabado de chegar, e me olhou de um jeito que nunca vi ela olhar para ninguém antes.
Mandei um SMS para a Gabi pedindo ajuda, que prontamente me ligou e me fez companhia pelo celular até que eu chegasse em casa. Contei por alto o que aconteceu, mas preferi conversar sobre outras coisas para me acalmar. Não consegui processar o que aconteceu.
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Só cheguei em casa e fui direto dormir. Nem no computador conseguia mexer.
Reviver a situação de ser apontada como algo que não sou, ser apontada por alguém que eu não entendo totalmente o modus operandi - eu lembro de sentir isso de forma muito avassaladora até o 9º ano, mas não consigo lembrar o por quê. Só consigo lembrar de como era horrível ser chamada de nomes que eu não reconhecia, acusada de coisas que eu não sabia quais eram. Uma sensação de estar perdida no meio do oceano com diferentes cardumes muito agressivos ao meu redor, disputando por mim.
Eu sequer sei ainda o que pensar sobre o Paul. Como o percebo. É como se eu estivesse sendo coibida de sequer desenvolver qualquer coisa que eu nem sei qual seria. Isso machuca muito.
Na quinta-feira, depois das aulas, que acabaram um pouco mais cedo por conta de uma prova aplicada em todo o colégio, Gabi foi com o pessoal me visitar na minha casa. Aqui é muito pequeno, então achei melhor irmos para a pracinha mais próxima para conversar.
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Todo mundo parecia muito preocupado comigo, de uma forma que não costumo experienciar. Acho que nunca na vida ouvi tantos “como você está?”, “como se sente?”, “quer alguma coisa?”. Foi tudo tão intenso que acabei sentando no chão para chorar - mas fui rapidamente acolhida por Paul, que em seguida foi conversar comigo mais em particular.
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- O que a Scarlet falou com você? Por enquanto, eu só sei pela Gabi. Quero ouvir de você - disse ele, fixando o olhar em mim.
- Não é que eu não queira dizer… Só me sinto realmente muito confusa. Ela me pediu para que eu não me aproximasse de você. Mas é muito estranho, porque eu nem nunca vejo vocês se falarem. Eu não entendi se tem alguma coisa rolando que eu não sabia entre vocês.
Paul suspirou, preocupado.
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- Não, não tem nada “romântico” entre eu e ela. Já estudo na mesma sala da Scarlet desde o 6º ano, e às vezes eu sentia ela tentando se aproximar de mim. Mas isso me deixava desconfortável, então eu só não correspondia e continuava com meus outros colegas. Não sei se isso deixa ela meio mordida de certa forma.
Olhei para Paul, que ainda parecia carregar uma preocupação que afetava até a sua postura. Ele me olhava como quem me pedia desculpas.
- Isso é só algo dela, então, né? Não tem nada a ver com você. Não precisa se sentir mal.
- Não me sinto mal dessa forma, só não quero que ninguém que seja meu amigo seja afetado por essa maluca. Me sinto desconfortável só de pensar na possibilidade.
Ficamos um tempo em silêncio, que foi interrompido por um abraço repentino de Paul.
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- Olha. Tem o festival amanhã, e eu tenho certeza que vai ser incrível e a gente vai arrasar. Mesmo se a gente não ganhar o prêmio, já me sinto muito feliz. Especialmente porque a gente se conheceu, Ryuko.
Lacrimejei um pouco nos ombros dele, sem saber como responder.
- Você é uma amiga muito preciosa pra todo mundo do grupo e a gente quer te proteger, ok? Pode sempre contar comigo e com o pessoal. Sempre.Senti nos ombros dele, no lugar dos pesos que estavam há pouco, um afeto que crescia. E senti que esse afeto contagiou todos nós, no abraço mais acolhedor que já recebi de amigos até então.
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Capítulo 5 - Kicked It in the Sun
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(narrado por Paul)
Quando eu me mudei para Evergreen Harbour, eu só sabia falar inglês. Eu e meu irmão. Meu pai já tinha aprendido a se comunicar bem no idioma daqui, e recebeu bastante ajuda para começar a se virar, comprar móveis e eletrodomésticos, saber onde comprar comida por um preço camarada. Essa ajuda veio toda dos pais do Levy, Arthur e Alessandra. Eles sempre foram muito atenciosos com a nossa família, e costumávamos fazer muita coisa juntos, já que éramos vizinhos de porta, e eu e Levy íamos para a mesma escola.
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Um dos passeios que mais fazíamos todos juntos era até o parque de Copperdale. Naquela época o parque já era bem voltado para casais, mas tinha bastante coisa para crianças também, então eu, Carl e Levy sempre íamos na roda gigante e na casa mal-assombrada. No final, tomávamos milkshake da barraquinha e víamos o pôr do sol no píer do parque. Meu pai, Arthur e Alessandra aproveitavam para passar o tempo pondo a conversa em dia, e tirando fotos nossas com a máquina do meu pai.
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No dia-a-dia, eu lembro que era a Alessandra que buscava eu e Levy na escola. Ela e meu pai revezavam. Quando Arthur nos buscava, era sempre de carro, ele dirigia bastante na época. Voltando com a Alessandra, ela sempre parecia animada, mesmo que com um pouco de melancolia no olhar. Levy sempre foi muito falante, e contava pra ela cada uma das atividades que a gente tinha feito no dia. Em dias temáticos, parecia que ele se empolgava mais ainda, já que a gente sempre voltava para casa com algum objeto que tínhamos feito à mão ou ganhado da professora. Alessandra guardava todos em uma pasta, que ficava no armário do quarto dos pais do Levy.
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Até que, um dia, Alessandra simplesmente foi embora.
Eu não sei se é porque eu ainda era muito novo para compreender o que tinha acontecido, mas na época eu tinha achado que ela também tinha morrido, como a minha mãe. Essa foi uma das poucas e últimas vezes que meu pai conversou comigo com calma e gentileza. Ele abaixou até a minha altura e explicou que Arthur e Alessandra haviam se divorciado. Me explicou também o que era um divórcio. Que era muito diferente do que havia acontecido com a minha mãe. Minha mãe não morreu para escapar do casamento com meu pai, pelo contrário - eles eram muito apaixonados um pelo outro e não queriam de forma alguma se separar. Foi só um “acidente”. Não era para a minha mãe ter ido embora da forma que ela foi.
Já Alessandra, como explicou meu pai, optou por ir embora. Ela e Arthur já não se gostavam mais, e então ela decidiu se separar e ir embora. Porém, ela continuaria viva, e provavelmente iríamos continuar a vê-la de vez em quando. Lembro de ele ter me contado isso enquanto Levy estava lá em casa. Acredito que ele tenha ouvido toda a conversa, pois lembro de logo depois ele ter chegado até nós e chorado dizendo que queria ver a mãe dele de novo logo.
Não foi o que aconteceu. Realmente, nunca mais vimos a Alessandra. Isso me faz pensar se, de certa forma, ela não morreu também depois que foi embora. Simbólica ou literalmente. Deve ter sido de forma mais simbólica, pois, muitas vezes, Levy recebe cartões postais sem remetente no correio. Ele acredita serem dela. Há uma pilha de cartões postais na gaveta da mesa de cabeceira do quarto dele, sem nada escrito além de “fique bem”.
Esse não é um assunto que o Levy gosta de falar sobre, logicamente. Todos lá em casa sabem que isso nunca deve ser trazido à tona senão pelo próprio Levy. Já faz tanto tempo que não falamos sobre a mãe dele, que sinto que se ele conversar sobre isso comigo agora, eu não vou saber muito bem o que dizer, pois já não lembro de muitos dos detalhes do que aconteceu naquela época. Tínhamos só 6 anos.
De maneira muito fortuita e apropriada para esse contexto todo, rolou lá no colégio um evento temático do Dia da Família essa semana. Lógico, já não é mais como quando éramos crianças, que era um mega evento, em que dançávamos e cantávamos músicas. Como já estamos no Ensino Médio, o máximo que aconteceu foi só que ganhamos uma lembrancinha da diretora. E ela caiu na besteira de dizer que era “uma lembrancinha para os pais e mães de cada um daqui”. Ela entregou para cada aluno um porta-retrato, com alguns dizeres referentes à família, e disse que era “ideal” para uma foto nossa com nossos pais.
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Eu sinto que, hoje, eu já não me afeto mais com essas coisas da mesma forma que quando eu era criança. Ou, pelo menos, eu me forço a não me afetar. Eu sei que a intenção da diretora não foi ser alguém ruim. Sinto também que, a principal diferença entre eu e Levy, é que minha mãe morreu. A dele está viva em algum lugar, e ele nunca vai saber qual. Ela simplesmente nunca mais veio ao encontro dele. Acho que eu também não saberia o que sentir numa situação dessas.
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Quando saímos da aula, notei o pessoal meio desanimado, mas vendo o Levy se sentir mal, achei que ajudaria se saíssemos juntos um pouco. Convidei todo mundo para ir na lanchonete e, surpreendentemente, todos aceitaram na mesma hora. Realmente parecia que todo mundo queria espairecer, mas não sabia dizer como. Levy ficou meio receoso de ir, mas insisti um pouco. Falei que, se ele fosse hoje, além de pagar o lanche dele, eu dividiria a janta lá de casa com ele. Não sei se realmente foi isso que convenceu, mas ele acabou indo. Pensando nisso agora, eu não deveria ter insistido.
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A caminhada até a lanchonete foi bastante silenciosa, até o momento em que o boca aberta do Daniel decidiu “quebrar o gelo”, de um jeito que só o Daniel sabe: deixando todo mundo meio constrangido.
- Levy, cê tá com mó cara de triste, o que tá pegando? - Quando Daniel disse isso, eu parei pra pensar e percebi que, provavelmente, o Levy só nunca contou pra ninguém além de mim sobre a família dele.
- Outra hora, Daniel - ele respondeu.
- Não, pô, que é isso, você sabe que pode se abrir com a gente!
- Amigo, mas se a pessoa também não quer falar nada, você precisa respeitar, né? - Gabi disse isso pegando ele pelo braço.
- Deixa quieto, Gabi. Depois eu falo - Levy acendeu um cigarro, aproveitando que ainda estávamos na metade do caminho até a lanchonete, onde é proibido fumar.
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Quando chegamos lá, o clima estava meio morno. Não estávamos com muito assunto além do festival que ia acontecer dentro de uma semana, já que isso deixava o Daniel super ansioso. Isso também não parecia ser um assunto que agradava o Levy. Em dado ponto, ele só levantou falando que ia lá fora fumar outro cigarro. Estava nevando já naquela hora do fim da tarde.
- Pô, galera, aproveitando que o Levy saiu. Quê que tá pegando aí? Por que que ele tá tão pra baixo? - perguntou, de novo, o Daniel.
- Meu Deus, Daniel, você é sempre insensível! - disse Gabi, bem irritada.
Eu sabia que em algum momento eles precisavam saber sobre o Levy. Todos os anos, acabávamos topando com esses eventos, e a reação do Levy era sempre melancólica e silenciosa. Todos ali, com exceção da Ryuko, já se conheciam há anos. Eu, erroneamente, achei que isso seria suficiente para me dar passe livre para contar, finalmente, sobre a mãe do Levy.
- Não, Gabi, tá tudo bem. Acho que ele nunca contou pra vocês mesmo - respondi.
- Na verdade, eu também me sinto um pouco preocupada, Paul. Ele é mais próximo de você do que de todos nós. Você deve saber do que se trata - disse a Ryuko.
- Bem… Então. É que, assim como eu, o Levy também não tem mãe.
Senti minha garganta queimar enquanto dizia isso para todos.
- A mãe dele morreu?! - perguntaram Daniel e Gabi ao mesmo tempo, assustadíssimos.
- Gente, pelo amor de Deus, fala baixo… Ele foi fumar um cigarro ali do lado, não em Nova York, né. Ele não gosta de falar isso pra ninguém. Mas, não, a mãe dele não morreu. Os pais dele são divorciados, e a mãe dele saiu de casa há muito tempo, quando a gente ainda tinha seis anos.
- Mas isso não é normal? Meu pai também já não mora mais comigo há anos, ele foi morar em outra cidade - ponderou Gabi.
- Não é a mesma coisa. É que, desde essa época, a gente não tem mais notícia da mãe dele.
Todo mundo fez um silêncio sepulcral por longos segundos. Ryuko estava tomando um milkshake e até isso ela parou de tomar, para não fazer nenhum barulho. Parecia um pacto secreto entre todos.
Eu sentia que, a qualquer momento, eu iria começar a chorar de tanto nervoso por ter contado para todos sobre a Alessandra. Mesmo tentando me convencer que eu precisava ter feito isso. Que já não dava mais pra adiar esse momento.
- Eu nem sabia que existiam mães assim - disse Ryuko, rompendo o silêncio.
- Ah, menina… A gente ainda vai ver de tudo nessa vida - comentou Gabi.
Enquanto Gabi dizia isso, Daniel foi se levantando da cadeira e andou em direção à porta da lanchonete. “Não, Daniel, fica quieto!”, ela pediu, sem sucesso. Ele saiu pela porta da lanchonete e foi andando em direção ao Levy. Ficou por um tempo apenas observando ele na neve.
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- Quê que foi, Daniel. Eu já vou voltar, nem tá tão frio assim. Não preciso do cachecol - disse Levy, compenetrado no cigarro.
- Não é nada disso - cortou Daniel. Mais um pouco de silêncio se passou.
- Então o que você quer? Quer cigarro também? Vai começar a fumar agora só pra me acompanhar aqui fora? Hehe - perguntou Levy, rindo.
- Cara, eu sinto muito pela sua mãe. Muito mesmo - respondeu Daniel. Levy ficou o olhando, abismado, já sem sorrir. Em seguida, ele virou as costas para Daniel.
- Eu não quero falar sobre isso. Já faz muito tempo, eu sei. Mas eu não quero falar - Levy terminou o cigarro e jogou na neve.
- Eu entendo. Desculpa não ter percebido isso todos esses anos. A gente também nunca foi na sua casa, eu não sei se ia perceber. Sou meio desligado mesmo.
- Você não é desligado, Daniel.
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Os dois ficaram mais um tempo em silêncio, olhando para o céu, até voltarem para dentro da lanchonete. Retornando à mesa, Levy rapidamente iniciou outro assunto entre a galera, sorrindo, como se nada tivesse realmente acontecido. Percebi que ele só devia estar querendo se livrar logo de qualquer mínima menção à sua mãe.
Daniel nos deixou na estação, e pegamos todos juntos o trem para casa. Já eram 7 horas da noite. Eu e Levy descemos só na estação final, então boa parte da viagem seria ainda com as meninas. Continuamos conversando, até que animados, com Gabi e Ryuko, até cada uma chegar na própria estação. Gabi desceu primeiro, na estação do mercado municipal de San Myshuno, Ryuko desceu em Wakaba. Levy fez absoluto silêncio até finalmente descermos em Conifer.
Quando descemos na estação, foi que ele finalmente desembestou a falar. Ele chutou uma latinha que estava no chão, e se colocou na minha frente, partindo pra cima de mim e me derrubando no chão.
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- Eu tenho que dizer quantas vezes que eu não quero falar sobre a minha mãe?! Por quê que toda vez você me humilha assim na frente de todo mundo?!
- Levy…
- Sabia que às vezes é insuportável perceber o quanto você conhece sobre mim?! Eu preferia que você não conhecesse NADA. Essas pessoas podiam ser minhas amigas de forma genuína, mas agora elas vão ficar com pena de mim. Pena! Você entende isso?! Você já parou pra tentar entender isso algum dia da sua vida?!
- Me desculpa, Levy…
- NÃO! Eu não vou desculpar nada! Não é possível que era tão difícil assim você só dizer que não sabia porque eu estava triste! Não ia doer! Eu não vou acreditar nisso! - Levy batia os pés no chão dizendo isso.
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- Ninguém ficou com pena de você. É justamente por serem seus amigos que eles se importam e querem poder te conhecer melhor, pra te entenderem melhor… - Tentei me justificar.
- E aí agora eles vão saber justamente daquilo que me deixa mais vulnerável! Sinceramente, eu não sei porque eu preciso passar por isso! Você deve sentir prazer em me ver assim!
Levy se abaixou no chão e começou a chorar.
- Toda vez você faz isso - disse à ele, olhando no horizonte.
- O quê?!
- Toda vez que alguém mostra um sinal mínimo de que se importa com você e quer te conhecer melhor, você surta. E agora, vai ficar falando que é culpa minha. Você realmente prefere que ninguém te conheça nunca? Você quer viver assim?
Levy se encolheu no chão mais ainda.
- Insuportável é eu ter que viver do lado de alguém assim. Se você vai ficar aí, problema seu. Eu vou pra casa - Peguei a mochila do Levy do chão, que estava alguns metros a frente, e fui levando em direção ao nosso prédio. Levy continuou chorando no chão.
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Chegando em casa, Carl já estava fazendo barulho com a televisão. Ele sempre parece fazer mais barulho ainda quando eu não me sinto bem. Consegui diminuir um pouco o volume da televisão porque pedi a ele para ir entregar a mochila do Levy. Enquanto ele se vestia para ir até a casa deles, aproveitei para abaixar o volume.
Depois de tomar banho, sentei com meu pai para jantar. De novo, um silêncio ensurdecedor que só foi quebrado quando ouvimos a porta da casa do Levy batendo forte.
- Você discutiu com ele? - meu pai perguntou. Eu apenas continuei focado na minha comida.
- Vocês dois parecem ter um longo passado pela frente pra resolver às vezes - ele disse, depois novamente voltando a fazer silêncio.
Enquanto lavava a louça, lembrei que havia prometido fazer marmita para o Levy levar pro almoço do colégio. Preparei a marmita, e quando fui deixar na casa dele, foi o pai dele que pegou. Estava visivelmente alterado depois de tanto beber.
No dia seguinte, o Levy não foi para o colégio.
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Capítulo 4 - Black Hole Sun
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(narrado por Daniel)
Nunca imaginei que esse dia chegaria, mas sinto que, pela primeira vez na vida, eu estou fazendo um progresso real com música. Real mesmo, no sentido de estar percebendo muita diferença entre quando eu comecei a tocar guitarra, e o que eu estou tocando agora.
Eu acho que música é uma coisa que eu comecei a gostar antes de quase tudo. Se eu for parar pra pensar sobre o que eu achei mais graça primeiro, se foram os desenhos que eu assistia na TV, ou se foram os discos dos meus pais, eu teria certeza que foram os discos. Não eram muitos, porque disco é uma coisa cara de consumir, mas eu ouvi muito todos, por muito tempo, até começar a trocar pra CD, e agora pra MP3. Sempre passei muito tempo ouvindo música e correndo atrás de mais músicas que eu gosto. E o meu negócio realmente é com o rock. Depois de passar esse tempo todo curando o que eu gosto de ouvir, eu percebo que é o rock mesmo. Mais do que o samba, mais do que o rap que eu também gosto demais.
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Isso já é background o suficiente pra entender o que me motivou a querer começar a tocar guitarra. Mas eu sabia que, por conta do custo das coisas, até daria pra ter uma guitarra, mas ter aula já sairia muito caro. Muita coisa na minha família era pautada por esse viés: vai custar quanto essa brincadeira? Vai dar pra gente investir mesmo? E, bem, meu pai conseguiu investir na guitarra sim - mas a condição era que eu estudasse sozinho, já que não tinha aula de música acessível perto da nossa casa. Imagina ter que viajar até Evergreen Harbour, ou até San Myshuno, só pra ter aula de guitarra. Isso é uma coisa que eu vejo rolar muito com quem mora aqui em Copperdale: incrível a cidade, mas a gente fica restrito às coisas que têm aqui. Tudo é no mínimo uma, duas linhas de trem de distância. Eu até gosto de viajar de trem, mas haja tempo, disposição e dinheiro. Penso muito na Gabi, que sai lá de San Myshuno pra estudar aqui agora. Estudar em Newcrest era mais tranquilo. Mas, é isso aí, né.
Eu sinto que todo o contexto está me ajudando muito. Recebo muita ajuda do Paul e da Ryuko o tempo todo nos nossos ensaios, e isso é algo muito valioso pra mim. Até a Gabi me ajuda, mesmo não entendendo nada de música, porque ela fica continuamente me incentivando a ir estudar em fontes "mais confiáveis", como diz o Paul todo santo dia. Mas, é claro, por causa de uma conversa que tive com o Levy, eu percebi que tem algo além disso tudo me puxando pra frente nos estudos com a guitarra. Aliás, algo não, mas sim duas coisas. Uma delas, é que vai ter um festival da canção popular no colégio. Outra, é com quem a gente vai competir. E olha, se tem uma coisa que eu não aceito, é perder um festival com essa premissa praquele pessoal do clube de música do colégio. Isso, pra mim, seria muito inaceitável. Eu odeio DEMAIS aquele pessoal, o jeito que eles tocam, os assuntos deles, e a prioridade que eles têm em tudo envolvendo música lá no colégio. É um ódio que simplesmente me move muito, não consigo explicar muito bem. Acho que dá pra explicar com algumas experiências que eu tive na escola.
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Durante o ginásio, da 6ª a 8ª série, eu frequentava a psicóloga da escola que eu estudava com o pessoal por causa do meu comportamento na sala de aula. Eu não era agressivo, eu não sofria bullying, nem nada tão particular assim. Mas os professores perceberam que eu não estava muito motivado com nada na escola, que eu zoava demais em sala de aula com meus colegas, e que isso atrapalhava a aula e a mim mesmo. Primeiro, eu fui conversar com a direção pedagógica da escola. Não deu muito certo, porque eu não consigo levar esse pessoal à sério de jeito nenhum. Muita palavra bonita pra pouco efeito. Mas foram eles que tiveram a ideia de me colocar no "divã" da escola.
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De primeira eu achei muito ridículo e humilhante ter que passar por isso, mas, conforme as consultas foram rolando - e era toda semana, bem nas sextas-feiras, pra eu dar logo um resumo completo da minha semana pra psicóloga -, eu fui só me sentindo muito, muito confortável com a situação toda. Era muito reconfortante pra mim encontrar a psicóloga, conversar com ela, fazer os exercícios que ela propunha nas sessões... Foi me ajudando a colocar a cabeça mais no lugar ao longo daqueles anos todos.
Essa escola que eu estudei (eu, Gabi, Paul e Levy, que fique claro) não chegava nem perto do nível de ensino do Colégio Copperdale, e também não tinha essa quantidade escrota de mauricinho pra tudo que era canto (mas tinha alguns). Eu sempre tive muito ódio de classe, e isso foi algo que explorei bastante nas minhas sessões com a psicóloga. E aí que teve um dia, uma sexta-feira, uma sessão em especial, que ela me falou uma coisa que até hoje passa muito pela minha cabeça nessas situações que eu me sinto competitivo. Eu estava explicando pra ela que eu sentia muita raiva dessa minha colega de turma, a Scarlet, por tudo que ela representa pra mim - uma brancona patricinha bem metida à besta, bem pela-saco, bem tudo de chato que vocês conseguirem imaginar em uma pessoa rica só.
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Eu não gostava de nada nela: não gostava da aparência, não gostava da voz, não gostava nem do jeito que ela andava, nem do jeito que ela se vestia, nada. Eu achava tudo sobre ela só muito chato, inconveniente. Me dava raiva ver ela usando a grana dos pais dela pra fazer só um monte de idiotice, comprar coisa cara por status, tipo celular, iPod, laptops que ela não usava porque não sabia mexer; me deu raiva que ela ganhou um teclado da mãe dela e foi fazer aula numa escola de música caríssima; me dava raiva a quantidade de vezes por ano que ela viajava com a família e com as amiguinhas dela, e o quanto ela se gabava disso nas reuniões pós-férias e pós-feriados da turma. Eu acho que passei a sessão inteirinha reclamando dessa menina.
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E aí, a psicóloga só me disse isso:
- Você já considerou canalizar essa raiva que você sente da Scarlet, em um motor pras coisas que você sente vontade de fazer? Você me disse há algumas sessões atrás que você ganhou uma guitarra do seu pai. Que tal começar a tocar ela, mesmo que sozinho?
Eu acho que aquela era uma parada que eu ainda não tinha tentado fazer: canalizar a raiva que eu sentia. Pros meus amigos e família, eu poderia não ser calmo, eles me achavam sim bem agitado, mas meus sentimentos ruins eram sempre muito contidos. Eu não compartilhava muito com as pessoas à minha volta o tanto de raiva que eu sentia de tudo naquela época, e o quanto pessoas como a Scarlet eram um ponto confortável de reclamação pra mim, pois elas simbolizavam perfeitamente aquele ódio todo que eu tinha. Foi depois daquela sessão, que rolou no começo da 8ª série, que eu comecei a ver a música como maneira de canalizar as coisas que eu sentia que eram intensas demais, e comecei também a conseguir domar isso dentro de mim bem melhor do que antes.
O problema é que o jeito que eu encontrei de estudar guitarra talvez não tenha sido o mais adequado. Tinha dias que eu me sentia tão mal, ou às vezes tão empolgado, que eu tocava até meus dedos ficarem vermelhos. Hoje eu já sei o mal que isso faz, já sei que eu não posso nunca sentir dor depois de tanto tempo praticando um instrumento. Eu já sei muito mais agora que eu parei e aceitei ajuda dos meus amigos. E eu sinto que é assim que tem que ser pra eu poder pelo menos começar a considerar uma vitória nesse festival da canção que está chegando. Fazia tempo que eu não me sentia tão motivado com alguma coisa; acho que só de saber que o principal competidor do meu grupo, é um grupo de palhaço rico, que sempre tem tudo de mão beijada, já é suficiente pra me empurrar muito mais do que quando eu só me sentia de certa forma inferior ao Paul e a Ryuko, por eles terem estudado música e eu não. Esse era o motor que faltava pra eu conseguir andar pra frente com meus estudos na guitarra.
Esse festival da canção foi um ponto crucial pro nosso grupo. Agora, além de se reunir pra ensaiar no colégio depois das aulas, eu também sempre levo o Paul e a Ryuko lá em casa, ou na casa do Paul, pra gente conversar, escolher repertório e estudar juntos algumas coisas.
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Foi numa dessas reuniões que a gente conseguiu escolher a música que vamos tocar: World Wide Suicide, do Pearl Jam. Eu me surpreendi muito positivamente que o pessoal aceitou uma ideia minha de repertório, no meio de tantas outras que tivemos. Pra tocar essa música, a gente até precisou pedir alguns materiais emprestados: um pedal de distorção e um de flanger, pra minha guitarra. Levy conseguiu pra gente com um conhecido dele que toca direto em San Myshuno. Fiz muita questão de testar muito eles e cuidar muito bem depois que peguei emprestado.
Outro dia, a gente foi impedido de usar a sala de música por causa do clube. Eu fiquei revoltado, lógico. O Paul ficou o tempo todo pedindo pra eu me acalmar, que a gente não precisava ensaiar naquele dia, que podia ser no dia seguinte, que a gente dava um jeito. Ele não é muito um cara de arrumar confusão. Mas meu sangue ferveu na hora que passou justo ela do nosso lado: a Scarlet. Esqueci de comentar antes, mas essa garota veio estudar no mesmo colégio que a gente agora no ensino médio. É muita sorte, né?
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Eu fui reclamar com o professor de música que a gente já tinha agendado a sala, e ele só ficou repetindo que "a prioridade de uso da sala é do clube de música oficial do colégio", que ele "não podia mudar as regras", e aí por isso ficaram os palhaços lá ensaiando enquanto a gente ficou chupando dedo do lado de fora. No meio da conversa, eu só ouço a risadinha infame da Scarlet no fundo, aquela risadinha que é sem abrir a boca direito pra rir, muito típica de qualquer garota patricinha.
- Tu tá fazendo o quê aqui, garota?! - Perguntei, visivelmente irritado.
- Ué, eu tô só esperando dar o horário de saída do clube pra eu estudar piano, Daniel. O quê que tem? - Ela respondeu toda debochada.
- Ah, então é assim? Ela pode usar a sala depois do horário deles e a gente não, professora? É assim mesmo que vai ser?! - Virei pra perguntar isso pro professor.
- Mas Daniel, ela reservou a sala. Lógico que ela pode usar depois do horário deles! Já estava agendado, não entendi a sua reclamação agora! - Respondeu o professor, de um jeito muito sonso.
- A gente também estava agendado! Como assim?! Isso é alguma prioridade? Ela nem vai tocar no festival!
- Daniel, essas são as regras! - E saiu andando o professor.
- BELAS REGRAS VOCÊS TÊM AQUI NO COLÉGIO! - Gritei, e dessa vez com o Paul suplicando pra que eu parasse de "fazer cena".
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- Cara, não precisa disso! Não faz cena, amanhã a gente ensaia, eu e Ryuko vamos ter tempo livre!
- E isso importa?! Nosso direito de usar a sala foi atropelado, e ainda outra pessoa ganhou prioridade no uso, mesmo tendo agendado depois da gente! Você acha isso justo? Fala pra mim, na moral!
- Ué, Daniel, eu tô só seguindo as regras... Coisa que você não sabe fazer direito, né. Hahaha! - De novo respondeu a Scarlet, com ainda mais deboche.
- E desde quando existe regra pra gente da sua laia, garota? Você tá aí falando e falando como se você não fizesse SEMPRE o que você quer! Não leva um único "não" nessa vida e tá aí cantando de galo, ah, faça-me o favor! - Respondi, de um jeito que eu ainda não tinha conseguido responder ela antes.
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Nessa hora, veio a diretora do colégio saber o que estava acontecendo. Paul se adiantou e foi na frente falar com ela, pra explicar com calma, mas ela não queria saber. Acabou falando que, se visse confusão de novo, ia vetar todo mundo que não fosse do clube de música de usar a sala depois das aulas. Fiquei calado observando a cara da Scarlet enquanto a diretora dizia isso, e ela só ficou sorrindo pra minha cara com ar de superioridade. Menina sonsa.
Naquele dia, eu voltei pra casa e fui direto pro meu quarto. Não conseguia conversar com mais ninguém, nem com a Júlia. Tudo de ruim que eu vinha sentindo esses tempos foi vindo à tona. Fui voltando a me sentir pequeno, minúsculo em comparação às outras pessoas. Pequeno como no dia que chamaram minha mãe na escola porque eu bebi e cheguei embriagado na aula. Minúsculo como no dia que meu pai brigou comigo ano passado falando que, do jeito que eu estava levando a vida, que ia acabar como uma nada, um ninguém. Ele me pediu desculpas por ter dito isso no mesmo dia, e me abraçou chorando. Mas essas palavras me marcaram muito. Acho que meu pai só sentiu muito medo. Medo do que ele via que estava acontecendo comigo, e talvez impotência porque ele já não conseguia estar mais tão presente no meu dia-a-dia, já que ele passava a maior parte do tempo trabalhando. Medo, culpa, e frustração. Foi a mesma coisa que eu senti naquela briga com ele.
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Eu já não aguento mais sentir essas coisas diante de qualquer conflito. Às vezes é realmente difícil manejar isso tudo, mesmo que eu sinta em alguns momentos que eu tenho as ferramentas na minha mão pra mitigar essas coisas. Eu só não consigo. Tem dias que eu não consigo.
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Fiquei um bom tempo só deitado na minha cama sem conseguir pensar em nada, até que o meu telefone tocou. Era o Paul. Eu fui direto pra casa, mas ele foi com a Gabi, a Ryuko e o Levy na lanchonete aqui de perto.
- Daniel, você não consegue mesmo passar aqui daqui a pouco?
- Pô, cara, hoje tá difícil pra mim. Não tô legal de verdade - respondi, deitado na cama.
- Mas eu tenho certeza que isso iria te animar!
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- Ah, não sei. Mesmo, cara.
Ouvi no fundo a voz da Gabi, "deixa eu falar com ele!", "deixa!", e ela pegou o telefone:
- Olha só, Daniel, é que a gente teve uma ideia pro nome do seu grupo! - Ela disse, falando mais alto que o normal. Deu pra ouvir o pessoal fazendo "shhh!!" pra ela falar mais baixo.
- E qual foi a ideia? - Respondi, meio surpreso.
- O grupo rival de vocês é o do clube de música, né? Eles nem têm um nome próprio, de banda. Se vocês tiverem, vai ser um grande diferencial, e eu tenho certeza que todo mundo vai lembrar!
- Tá bom, Gabi, desembucha logo o nome aí, garota.
- A música do Pearl Jam que vocês vão tocar, você já notou que dá um ótimo nome de banda? Se for uma sigla, por exemplo: W.W.S. Parece nome de site! Combina muito com o que vocês estão tocando esses tempos!
Fiquei mudo no telefone por um tempo antes de conseguir responder. Ouvi a voz da Gabi repetindo meu nome pra confirmar se eu ainda estava na linha. Depois, ela explicou que foi uma ideia do Paul e do Levy, e que ela e a Ryuko tinham achado genial.
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De repente, fui parando de me sentir pequeno. Comecei a me sentir, na verdade, abraçado por todo mundo. E era essa a energia que eu precisava pra me mover de fato. Quando eu sinto que tenho as pessoas que eu amo ao meu lado, tudo parece grandioso de novo, e um dia frio pode se transformar em uma memória que transmite muito calor.
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O ódio, a raiva, podem ser um motor pro que eu tenho vontade de fazer na vida. Mas sinto que, se eu fosse conversar com a psicóloga agora, ela me diria que o amor é o destino que me motiva a dirigir até onde eu quero ir. E eu concordaria com ela, indo sorrindo pra casa depois da sessão.
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Capítulo 3 - Nightwalking
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(narrado por Ryuko)
Eu comecei a tocar bateria há 2 anos, pois alguém do grupo de taiko da escola havia divulgado para os colegas o panfleto de um curso de música que havia aberto em Komorebi. Me interessei porque era um curso bem diferente dos que eu conhecia da região - tinha uma pegada mais voltada pra música popular, jazz, hard rock e outras coisas do gênero. Na época, eu tinha acabado de descobrir uma das minhas bandas favoritas, a L’arc~En~Ciel, e passava o dia todo ouvindo um mesmo álbum deles: “Ark”, de 1999. Quando me peguei tentando reproduzir a batida da música de abertura do álbum no meu tambor, “Forbidden Lover”, foi quando eu percebi que seria legal saber tocar uma bateria de verdade, e fui atrás do curso que meu colega indicou. As aulas eram muito divertidas, e como meu professor conhecia as bandas que eu gostava, eu me sentia muito motivada. No entanto, uma das coisas que ele falava eu fui lembrar só recentemente, pois eu nunca levava a sério quando ele dizia: “Você vai se divertir muito em uma banda de rock, porque vai ser muito requisitada. Ninguém nunca acha baterista pra tocar junto!” Eu realmente achei que ele estava só sendo muito gentil.
Hoje, faz mais de dois anos desde que comecei o curso, e eu estou aqui realmente tocando numa banda de rock. Foi exatamente como meu professor previu: quando descobriram que eu tocava bateria, imploraram para que eu tocasse. Só consigo lembrar do Daniel levando eu e Paul para a lanchonete perto do colégio, e implorando que eu tocasse bateria com eles dois, pois "seria ideal", "é perfeito que seja você", e eu super sem graça com a cena. Mas, tudo bem, pois como meu professor disse, eu realmente tenho me divertido muito tocando e ensaiando com eles.
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Bom, não sei se todos estão se divertindo, claro… No último ensaio, tivemos um momento bem engraçado e peculiar envolvendo o Paul e o Daniel:
- Daniel, pelo amor de Deus, você não tá percebendo que essa música tá em outro tom, diferente do que você tá tocando? Não é possível que você tá só ignorando isso…
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Paul parecia desolado, afundado no seu próprio transtorno ao perceber que Daniel estava seguindo uma outra partitura para a música que combinamos de ensaiar naquele dia. Usávamos a sala do clube de música do colégio para ensaiar toda quarta-feira, depois das aulas.
- Mas eu não sei ler essa partitura complexa que você trouxe, cara! Só você que acha que eu vou saber ler! - Daniel gritava.
- Complexa?! Como você não sabe ler um conjunto de cifras no campo harmônico de ré maior? É MUITO fácil! - Paul gritou de volta.
- Eu sequer SEI o que é um campo harmônico, você é MUITO arrogante! Como você acha que alguém normal saberia o que é isso?! É muito específico!
- Tá vendo, por isso que a gente sempre fala que você devia ir estudar de verdade ao invés de ler tablatura e depender do Cifra Club, olha o resultado aí! Você não sabe ler um acorde de verdade!
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Um começou a falar por cima do outro, até que, de repente, Levy entrou na sala do clube, com a tosse característica dele saltando garganta afora.
- Meu deus, rapaziada, como vocês fazem escândalo. Quê que é isso. O que tá pegando? - Ele indaga, entre tossidas.
- É que o SEU AMIGO acha que eu tenho que saber o que é um campo harmônico pra tocar uma música do David Bowie, só porque ELE escolheu a música pro ensaio. - Daniel de novo falava super exaltado.
- Daniel, eu JURO POR DEUS, não tá difícil essa cifra, eu nem coloquei na pauta, coloquei na letra da música pra te facilitar!
- Pera aí, pera aí, então temos um problema anterior à cifra: essa música é em inglês, né? “All the Young Dudes”, do Mott the Hoople. Daniel, você já aprendeu a falar e a ler em inglês? - Levy sentou do lado de Daniel. Fez-se um silêncio absoluto na sala por cerca de 1 minuto.
- …Esse idioma burguês do caralho, pra quê que eu vou aprender isso?! - disse Daniel, furioso.
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Aquela foi uma das cenas mais engraçadas do meu dia. Foi o Daniel dizer isso, que eu e o Levy começamos a rir muito. Eu nunca tinha visto o Levy rir, aliás. Ele sempre parecia muito duro. Recentemente, o que eu mais via ele fazer era ir pro terraço fumar cigarro. Às vezes ele ia acompanhado, às vezes não. Foi um momento bastante único; Paul estava mais transtornado ainda depois dessa informação, gritou “ah sim, agora tudo faz sentido!”, “você acha que eu tenho cara de burguês, Daniel?!”, mas eu e Levy só continuamos rindo. Ele decidiu ajudar o Daniel fazendo uma partitura improvisada da música que estávamos ensaiando, mantendo a tablatura para os riffs e solos, e colocando palitinhos embaixo de cada acorde da base harmônica para indicar o tempo que eles duravam, e indicando que Daniel seguisse o ritmo que eu estava fazendo na bateria. Assim, ele não precisaria se guiar pela letra da música. Conseguimos terminar o ensaio tocando a música inteira, e considerei isso um grande sucesso. Quando arrumamos os instrumentos para ir embora, Levy pegou seu maço de cigarros, colocou no bolso, e se despediu dizendo “da próxima vez eu não vou interromper meu cigarro pra ajudar ninguém não, hein!”, e foi andando em direção ao ponto de ônibus.
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Assim tem sido os nossos encontros para ensaiar. Pode parecer meio caótico a princípio, mas sinto que sempre nos divertimos muito com os resultados. Sinto que esses conflitos entre Daniel e Paul acontecem não pelas diferenças que eles têm, mas sim por serem muito amigos e quererem melhorar musicalmente juntos. O Paul, em especial, bate muito na tecla do quanto ele considera importante que o Daniel estude harmonia para ir melhor nos ensaios, e para tocar guitarra melhor de forma geral. Quando a Gabi assiste nossos ensaios, mesmo que ela ria bastante das besteiras que o Daniel fala, e do quanto o Paul fica estressado por ser muito perfeccionista, ela costuma compartilhar da mesma opinião, e fica dizendo que “vai dar uns cascudos” no Daniel pra ele estudar.
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Eu não sei se estudar música formalmente faz tanta diferença assim para a nossa proposta musical; acho que nossos amigos incentivam o Daniel a estudar mais por se preocuparem com ele, com o futuro que ele quer seguir na música, do que por algum detalhe técnico real. O Daniel não é excelente, mas toca bem todas as músicas que ensaiamos. Eu e Paul temos apenas a “vantagem” de estarmos mais acostumados com um tipo específico de prática musical, que facilita para que agora toquemos juntos e consigamos estudar as músicas que iremos tocar.
Sinto que formar esse grupo fez com que todos ficássemos mais próximos. A Gabi sempre aparece nos nossos ensaios quando ela não tem o encontro do clube de artes, e até o Levy, que sempre vejo muito sozinho, sempre aparece também, quando já estamos encerrando. Alguns dias, ele vai embora junto com o Paul, já que eles são vizinhos. Sempre vejo o Paul pegando um saco com uma marmita vazia do Levy quando eles estão no ponto do ônibus com a gente; acho que até o almoço eles dividem. Ah, seria muito legal ter amizade com alguém que mora próximo de mim a esse ponto… Sempre almoço na escola, ou cozinho meu próprio almoço na noite anterior. Imagina ter um vizinho que cozinhasse pra mim?
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O Daniel e a Gabi estão sempre falando de um jeito que parece um outro idioma. Não sei se é porque a Gabi passa muito tempo na internet, mas ela tem um vocabulário muito específico que ela usa nessas horas, e também para falar de assuntos que parece que só ela e Daniel entendem. É fofo, mas também bastante confuso tentar acompanhar os dois. Sinto que quando conversamos todos juntos, eles mudam o jeito que falam, e é bastante perceptível. Não sei se sou eu que sou pouco acostumada com como as pessoas são fora de Komorebi, já que boa parte da minha vida foi só lá, e também por causa do cerceamento dos meus pais, ou se eles realmente têm uma coisa que é só dos dois.
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Por enquanto, me sinto uma pessoa que ainda assiste muito os relacionamentos desses amigos que já eram muito unidos antes da minha chegada, e também me sinto uma pessoa sendo observada por eles, mesmo que com muito carinho, e não com uma curiosidade “exótica” que eu vejo outras pessoas tendo comigo. Acho que ainda falta um pouco para que eu me sinta realmente incluída no grupo, mesmo vendo que na verdade esses meus novos amigos se esforçam até que bastante para que eu me sinta parte desse grupo, e para que eu possa confiar neles como amigos de verdade.
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Uma das pessoas que eu mais vejo fazer esse esforço, além do Daniel e da Gabi, que são muito literais no seu suporte, é o Paul. Percebi isso num dia em especial em que ele decidiu pegar o trem comigo até a estação que me deixa perto de casa, e depois voltou pra casa no trem de volta. Ainda não entendo muito bem o que levou ele a tomar essa decisão, já que Evergreen Harbor é realmente muito distante de Komorebi, mas ele insistiu. Disse que “queria conhecer” os arredores daqui, e que fica muito preso só ao próprio bairro. Acabou que ele sequer saiu da estação pois realmente precisava voltar pra casa e já havia anoitecido, mas ele prometeu que um dia viria realmente visitar aqui para conhecer, e pediu que eu fosse “sua guia”. Deve haver mesmo um charme em morar num local todo projetado para receber estrangeiros de um país muito específico.
Nesse dia, enquanto estávamos no trem, Paul me contou algumas poucas coisas sobre sua história. Contou que perdeu a mãe muito cedo, e que isso foi o que motivou a saída de sua família de Dublin. Contou que não sente vontade de voltar pra lá, pelo menos por enquanto. Reclamou bastante da grosseria e frieza do pai dele, e da falta de noção do irmão dele. Falou sobre como e quando conheceu o Daniel e a Gabi, e também que conheceu o Levy logo quando se mudou para Conifer. Levy o ajudou muito a aprender o nosso idioma e a se misturar mais com as crianças daqui, para não chamar muita atenção. Mesmo tendo me contado sobre essas coisas, o que ele parecia estar mais interessado naquele dia era sobre mim, pois fez muitas perguntas. Era a primeira vez que alguém me perguntava tanta coisa sobre mim desde que saí da escola japonesa; tiveram coisas que até tive que ficar bastante tempo pensando antes de responder. Sorte minha que o caminho era realmente longo até a estação.
Paul me perguntou sobre minha família, minha relação com os meus pais, como eu comecei a estudar música, quais eram minhas bandas favoritas, e toda sorte de coisas relacionada aos meus gostos pessoais. Contei pra ele sobre os CDs que comprei do Gazzette, do L’arc~En~Ciel, do My Bloody Valentine. Falei que levaria pro colégio pra ele dar uma olhada depois, pois ele não conhecia nenhum dos grupos. Rimos bastante falando das bandas de rock que o Daniel gostava. Rimos falando do quanto a Gabi zoa ele por estar sempre com uma blusa do Pearl Jam ou do Nirvana, que ele nunca saiu de 1995.
- Mas é verdade! A gente ainda era muito pequeno nessa época, mas ele tem algum tipo de fixação com esse pessoal. Ou então, ele tem poucas blusas mesmo, hahaha! - disse Paul, apoiando o rosto na mão direita.
- Se for o caso de ele só ter essas blusas de banda, vai ser maldade zoar com ele, hahaha. Eu consigo entender, eu também não tenho tanta merchan assim das bandas que eu gosto. Ter os CDs já é uma grande coisa! - respondi, tentando atenuar a situação do Daniel.
- Eu nunca tenho é nada, haha. Me faltam recursos pra ser fã de verdade de alguma coisa. Ah, olha, amiga, acho que já estamos perto da sua casa, né? - Ele perguntou, olhando pela janela.
- Perto da “minha casa” é muito forte, hahaha! Mas já estamos perto de Komorebi sim. Bom saber que essa vegetação é característica daqui também! Deve ser mesmo um lugar diferenciado.
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- É realmente diferenciado. Eu nunca vim aqui, mesmo. Você precisa me levar pra fazer um tour. Temos que chamar o resto do pessoal também! - Paul disse isso muito animado, olhando pela janela.
- Podem ficar à vontade! Eu ficaria feliz de verdade de receber todos aqui e mostrar os arredores, tem muita coisa legal pra fazer, e muita comida boa também. É ótimo pra passear em grupo.
- Eu tenho vontade também de saber como era a escola que você estudava. Era uma escola pra japoneses, né? Como era lá?
Eu não lembro se respondi essa pergunta ou não. Eu só continuei olhando na direção do Paul, sem responder. Na minha percepção, parece que passamos longos minutos em silêncio nos encarando, mas na verdade foram alguns segundos. Foi o tempo exato de chegar na estação que eu desço, Wakaba.
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Descemos juntos, depois de eu sair do transe e perceber que havíamos chegado. Por pouco não descemos na estação errada. Ficamos ainda um tempo dentro da estação tomando um suco de caixinha que pegamos na máquina automática, e quando eram cerca de 19 horas, Paul pegou o trem no sentido de Evergreen Harbor. Conifer é a estação final do ramal dele.
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Quanto mais tempo passo com o Paul, mais sinto que ele é alguém interessante. Eu compartilho com ele o sentimento de ser vista eternamente como estrangeira em qualquer lugar que estejamos que não consigamos nos misturar 100% com os transeuntes. Mesmo falando como um nativo, se vestindo como um nativo, ele sempre será lido como europeu, e eu sempre serei lida como asiática. A única diferença é que, sobre ele, as pessoas sempre estarão corretas. Não é o meu caso. Sinto que o Paul é uma das poucas pessoas que já conheci que consegue entender essa nuance perfeitamente, e isso me faz sentir muito confortável de estar com ele.
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Não sei quando ele irá visitar aqui, mas espero que seja logo. Quero poder receber nossos outros amigos também. Quero poder logo chamar eles de amigos também. Eu às vezes fico com o sono agitado pensando nisso tudo. Nunca passei por esse tipo de ansiedade antes.
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Capítulo 2 - Chamber of Reflection
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(narrado por Gabriele)
Bem, é no mínimo interessante que eu também esteja aqui contando uma história, mas não a minha história. Vim aqui falar um pouco sobre meus amigos. Mas, claro, também vai ter um pouco de mim nisso tudo.
Vou começar dando um pouco de contexto: essa semana, lá no colégio, tivemos o “dia das profissões”. É um dia que profissionais de algumas áreas específicas visitam o colégio e falam sobre como é o trabalho de cada um deles, e como eles se sentem na área de trabalho que atuam. Eu já sabia da existência desse evento quando entrei pro colégio no início do ano, e já imaginava que seria um dia chato, pois eles nunca, nunca, chamam artistas para participar. Nenhum tipo de artista: nem os pintores, nem os músicos, nem os dançarinos… Vão só algumas profissões clichês, como médicos, chefs de cozinha e afins.
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Isso me incomoda porque, como vocês podem ver, eu sou artista. Essa foi uma das coisas da minha vida que eu defini mais cedo. Com 4 anos eu comecei a desenhar já um pouco diferente das demais crianças da minha sala na escolinha, e era o que eu mais gostava de fazer no meu tempo livre, de acordo com a minha mãe. Entre meus 5 e 7 anos, eu passei a maior parte do meu tempo (quando não estava brincando com meus amigos em casa e na escola, ou no Prado de Myshuno) desenhando e colorindo uma série de cadernos, todos que minha mãe guarda até hoje. Aos 8 anos, fui fazer um curso de pintura infanto-juvenil na Galeria Casbah, em San Myshuno, que é do lado de onde eu moro, e ali eu decidi sozinha que seria artista. Não importa se famosa ou não - eu quero viver da pintura. É o que, até agora, eu sei fazer de melhor, e o que me dá mais prazer de fazer. Nessa mesma época, eu ganhei meu primeiro cavalete para pintura, e eu sinto que o que mais acumulei ao longo da infância e da adolescência foram quadros que eu pintei - tendo eu gostado deles ou não, independente da técnica utilizada.
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É por isso que me sinto tão triste quando percebo que, na verdade, essa profissão não é muito valorizada socialmente. O que com certeza é a razão por trás de ela não ser incluída no dia das profissões do meu colégio, mesmo sendo o colégio de maior prestígio do país. Eu sei que minha mãe acha incrível e me apoia até as últimas consequências, porque temos condições financeiras para que eu estude artes; sei que meus amigos mais próximos me dão apoio nisso também, especialmente o Daniel, que faz sempre uma cena quando vê algumas das minhas aquarelas. Fica falando que eu “nasci pra ser pintora”, às vezes chega até a chorar. Nem sei onde enfiar minha cara nessas horas. Daniel sempre sente tudo de forma muito exagerada.
Bom, mas quem sou eu também pra falar dele, né? Eu fico meio envergonhada nessas horas porque sinto que a única coisa que levo mais a sério na minha vida é a pintura, e porque já estou acostumada com outros tipos de crítica artística que não são tão emocionais. Mas é injusto eu falar do Daniel dessa maneira - todos os outros setores da minha vida são movidos pela pura emoção e pela pura adrenalina de sentir. Eu pareço uma pessoa calma e comedida pra quem vê de fora, mas por dentro eu estou sempre numa ansiedade intensa, querendo sentir prazer o tempo todo. Isso também é parte do motivo de eu gostar de pintura - é algo que mexe demais comigo, que me dá prazer instantâneo, mesmo com todo o estresse do processo. Mas vejo que esse é o motivo principal que me faz gostar de todas as outras coisas que eu gosto, especialmente o tempo colossal que eu passo na internet, com pessoas da internet, consumindo coisas da internet sem muita medida. (Ainda bem que minha mãe não monitora 100% do que eu faço no computador… Nem vê todos os tipos de pessoa com quem me relaciono…)
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Enfim, voltando aos acontecimentos desta semana. E de outras semanas também. Recentemente, eu tenho me sentido como uma grande consultora de assuntos gerais para os meus amigos. Sim, o Daniel, o Paul, e agora a Ryuko, que entrou no colégio esse ano junto com a gente, mas que a gente não conhecia antes, já que ela estudava lá em Komorebi, na escola japonesa. Teve um fim de semana, exatamente antes da semana do dia das profissões, que aconteceu uma coisa muito engraçada: cada um dos três apareceu na minha casa, em momentos totalmente distintos, trazendo alguma questão. Primeiro, no sábado de tarde, apareceu a Ryuko. Ficamos eu e ela no meu quarto, enquanto eu pintava um quadro que estava atrasado por causa da última semana de provas, ela contando sobre as questões da vida dela nesse momento, e eu tentando responder à altura, tentando fazer ela se sentir mais confortável. Nossa conversa foi essencialmente sobre como ela se sente em relação aos hobbies dela.
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- Gabi, você sente paixão quando você pinta? - Ela perguntou.
- Sim, amiga, acho que sim. Acho que é uma das coisas que eu mais gosto de fazer. Por quê? - Respondi.
- Eu tenho tentado definir qual é a minha paixão, dentre as coisas que eu gosto de fazer. Eu sinto que gosto de muitas coisas diferentes, e isso faz com que eu perca o foco daquilo que eu realmente gosto mais. - Ela disse, parecendo apreensiva.
- Mas por que você acha que não pode gostar de muitas coisas ao mesmo tempo? Quem tá te cobrando esse foco em uma coisa só? - Questionei ela, tentando entender aonde ela estava querendo chegar.
- Não tem ninguém em especial me cobrando isso, mas acho que é assim que precisa funcionar. Não é?
- Amiga, claro que não. Assim, óbvio que vão ter algumas coisas que vamos priorizar mais que outras dentro dos nossos hobbies. Algumas podem acabar virando uma paixão mais… “profissional”, vamos colocar dessa forma. Mas você vai continuar gostando do resto, e tá tudo bem. - Esclareci.
- Bem… Pensando por esse lado, de algo que pode acabar virando uma “profissão”... Eu tenho pensado, e acho que gostaria de trabalhar com moda. - Disse Ryuko, olhando pela janela do meu quarto pra cidade.
- Então dedica um pouco mais do seu tempo a estudar moda, meu amor. Vai até onde você conseguir ir.
- Mas eu também acho que poderia fazer alguma coisa com música.
- Ryuko, nada te impede neste momento de se dedicar um pouco mais a essas duas atividades. Você não precisa escolher uma em detrimento da outra. - Disse, entre pinceladas de tinta óleo.
- …Acho que você tem razão.
Ela continuou falando sobre a vida dela, e eu continuei pintando e tentando dar algum feedback até ela ir embora, no fim da tarde.
No domingo, acordei de manhã cedo pra andar de bicicleta pelo bairro e comprar pão. Já tinha em mente chegar em casa e continuar meu quadro.
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Assim que estava chegando em casa, vi o Paul na porta do meu prédio. “Ah, pronto”, pensei: “Vai chegar um de cada vez”. Nos demos bom dia, e ele subiu comigo.
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Enquanto tomávamos café juntos, ele estava em silêncio, olhando pela janela da minha cozinha. Perguntei se estava tudo bem.
- Olha, Gabi, - começou ele - como você acha que vai ser esse dia das profissões?
- Até onde eu ouvi das colegas do 2º ano, eu entendi que é um dia que recebemos a visita de uns 3 profissionais de áreas distintas lá no colégio. Eles vão no auditório, e dão uma palestra bem rapidinho sobre o que cada um faz. A gente vai assistindo e pode fazer perguntas pra eles no final.
- Hm… Entendi. - Paul parecia desanimado à beça.
- Por que você quer saber? - Perguntei, já imaginando o que ouviria de resposta.
- Ah, você sabe como eu me sinto sobre esse tópico. Esse assunto já rolou algumas vezes entre eu e meu pai, e ele nunca reage bem ao que eu me sinto mais atraído pra fazer, nem ao que meu irmão gosta de fazer. Ele é muito sisudo o tempo todo.
- Sei, sei sim. E aí?
- E aí que eu tenho certeza que, mesmo sem falar comigo, ele vai me questionar sobre o dia das profissões, porque todos os pais e responsáveis receberam panfleto sobre esse evento. - Disse Paul, apreensivo.
- Acho que você só tem como saber como ele vai reagir quando ele abrir a boca, né, amigo. Antes disso a gente tá só supondo com base nessa personalidade fofa dele.
- Eu sei disso. Mas, ainda assim… Não é estranho também que quando esse assunto venha à tona, eu não consiga pensar em nada que eu realmente goste ou que eu seja bom?
- Paul, - olhei direto nos olhos dele - a gente acabou de fazer 15 anos. Você nem isso, seu aniversário é em maio. Faltam uns dias ainda. Essa ansiedade só faz sentido na cabeça do apressado do seu pai. Você ainda é jovem, e até terminar o ensino médio falta é tempo. É normal você não ter ideia ainda do que você quer fazer depois do colégio.
- …Racionalmente, eu sei que faz sentido o que você disse. Mas ainda assim, é difícil lidar com meu pai nesse quesito. Eu realmente me sinto mal.
- Eu entendo como você se sente, mas entre o que o seu pai quer e espera de você, e quem você é na realidade, tem uma boa distância, né?
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Ficamos um pouco em silêncio depois que eu disse isso a ele.
- Você não estudava música com o Levy no cursinho lá perto da sua casa? Por que não explorar isso um pouco? Até seu pai acha que você canta bem. - Disse, tentando animar ele um pouco.
- Ah, ele não acha que isso dê futuro…
- Mas e você? O que você acha de cantar?
Paul ficou me olhando por longos segundos, daquele jeito amuado dele, para então conseguir me dizer: “ninguém nunca tinha me feito essa pergunta até agora”. Sugeri que ele pensasse sobre isso com mais calma, e falei que ele não precisava me dar retorno nenhum sobre o assunto depois. Terminamos de tomar café, minha mãe chegou em casa da reunião de professores da escola dela, abraçou o Paul, e ele foi embora dizendo que precisava fazer mercado. Acho que eram 9 horas da manhã quando ele saiu. Nos abraçamos na despedida.
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Quando foi chegando o início da tarde, lá pelas 13 horas, e eu estava no meu quarto continuando o quadro, me passou pela cabeça, “agora só falta chegar o Daniel, né?". Parece que esse pensamento atraiu ele, pois em menos de 1 minuto eu ouvi o interfone. E era justo quem, né.
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- Qual foi, Gabi, deixa eu almoçar aqui hoje! - Já chegou cheio de vontades.
- Como se eu pudesse te mandar embora pra casa depois de você pegar trem até aqui, né, bobão? Pode subir.
“Onde foi que eu me meti?”, pensei. “Será que eles acham que eu sou mesmo uma pessoa equilibrada pra dar conselho?”
Apesar de o Daniel falar assim sobre querer comer aqui, ele trouxe um frango assado de padaria pra gente almoçar. “Almoço de domingo!!”, ele falou, todo animado; “toda família devia poder comer um frangão desses aos domingos!”
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- Você pegou 10 reais do seu pai pra comprar esse frango e ter uma desculpa pra vir aqui, né, Daniel? Não vou fingir que não te conheço à essa altura do campeonato. - Disse a ele.
- Ah, mas qual o problema, também? Você gosta de frango! Eu que tô tentando evitar. Até o final do ano eu vou ser vegetariano. Vocês estão de prova! - Disse Daniel, olhando muito sério pra minha mãe, Camila.
- Pode deixar, Daniel, vou avisar sua mãe que você não vai mais comer o empadão dela. - Disse minha mãe, brincando.
- Ah, tia… Eu disse que vai ser até o final do ano justamente pra minha mãe poder se acostumar! Se eu parar rápido assim, de uma vez, você sabe como ela vai ficar…
- Amigo, você realmente veio só almoçar?
Nesse momento, minha mãe saiu da cozinha dizendo que ia tomar banho e que almoçaria depois, pois tinha alguns planejamentos para terminar. Daniel sentou na mesa da cozinha comigo, e foi montando o prato dele.
- Eu tô meio ansioso esses dias com essa parada de dia das profissões. Meus pais receberam o panfleto do evento na sexta-feira. O pessoal lá do colégio é muito ligeiro pra mandar correspondência, viu?
- Mas por que você tá ansioso? - Perguntei, já esperando uma bomba emocional do Daniel.
- Você sabe que eles só colocam profissão de playboy pela saco lá, né? Não vai um artista, não vai um agricultor rural, não vai um trabalhador assalariado. É só mauricinho. Qual a graça disso? Cadê a inclusão, porra? E o pior é que meus pais compram demais essas ideias aí, porque eles entram numa de “ah, filho, você precisa ter uma profissão de verdade, pra sua vida ser melhor que a nossa, blablabla…” E desde quando nossa vida é ruim, Gabi? Oxe. - Disse ele, transtornado.
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- Daniel, você sabe que seus pais pensam assim porque eles tinham sonhos de carreira e não conseguiram seguir depois que casaram e tiveram você e a Júlia… Eles se sentem frustrados, e não querem que você se sinta também. - Tentei ser o mais empática possível ao dizer isso.
- Frustrado eu vou ficar se eu não puder fazer nada que realmente me inspire, que me faça sentir apaixonado. Se for pra ter uma profissão de verdade, eu quero ser músico então.
- Então vai lá estudar música, deixa de ficar só no Cifra Club e nas revistinhas de entrevista do Kiko Loureiro.
- Tu não precisa falar assim do Kiko, cara!
- Mas eu menti? Você sabe que precisa estudar formalmente pra poder ser músico e ganhar dinheiro com isso!
- Tá bom, tá bom, eu sei. Acho até que meus pais iam achar bacana isso. Mas ainda tem uma parada me incomodando…
- O quê?
- Com quem eu vou tocar, Gabi? Não tem graça tocar sozinho.
- Tem literalmente um clube de música no nosso colégio, você realmente nunca pensou em ir lá dar uma sondada no pessoal?
- Aquele bando de metido que só toca música clássica? Deus me livre, garota. - Disse ele, com tanto desdém que chegou a virar a cara pro lado.
Ficamos concentrados na comida por um tempo. Enquanto comíamos, eu tentei pensar em quem sugerir, mas, realmente, o pessoal do clube de música não combinava com o Daniel. O que um menino viciado em tocar rock tem a ver com esse pessoal? Não é um absurdo que ele não queira se misturar. Até que finalmente minha cabeça deu um estalo:
- Ah, mas eu devo ser lerda mesmo. Garoto, o pessoal que você procura pode estar mais perto do que você pensa. - Disse, me lembrando das conversas que tive nesse meio-tempo com o resto dos nossos amigos.
- Como assim? Tu não tá pensando em eu falar com o Paul, né?
- E por que não? Ele veio aqui hoje me falar justamente do dia das profissões também. Falei que ele devia considerar ser cantor.
- Hahahaha, duvido que ele vai levar isso pra frente!
- Fala com ele, cara. E fala com a Ryuko também. Você sabia que ela vai se inscrever no clube de música?
- Ué, sério? - O brilho nos olhos do Daniel de repente ficou mais cintilante.
- Sério, você devia falar com eles dois. Vocês já se dão tão bem, por que não tentar um projeto juntos? Se não der em nada “profissional”, pelo menos no mínimo vocês vão se divertir bastante.
Daniel colocou a mão no queixo como se imitasse a pose d’O Pensador, e ficou um tempão colocando frango pra dentro e pensando. Depois de alguns minutos, ele só pega meu rosto, beija minha testa (com aquele bafo de frango, eu mereço), e grita: “você é GENIAL, Gabi. Como sempre!!”
Passamos mais um tempo da tarde juntos. Ele pediu pra ver o quadro que eu estava pintando, e também foi pedir um livro emprestado pra minha mãe.
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Por alguma razão, ele tem estado muito interessado em Dostoiévski. Me pergunto se ele sequer entende os livros dele quando ele pára pra ler. Nesse nível de ansiedade, acho um pouco difícil. Mas, né, que bom que ele está lendo… No fim da tarde, ele foi pra casa, e eu já estava terminando o quadro.
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Apesar de ter tido intensas últimas 24h naquele fim de semana, depois que o Daniel foi embora, me bateu um sentimento de fim de domingo que tem sido muito comum: de repente, me dá muita solidão.
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Eu fico tentando preencher essa solidão com meus amigos da internet, com meu blog, com a pintura, com as músicas que eu gosto de ouvir todo dia, com a minha mãe… Tento preencher até pensando que há um futuro na arte que me aguarda. Mas acho que nada disso é realmente capaz de suprir isso que eu sinto. Eu ainda estou no processo de descobrir como lidar com esses sentimentos. No final do domingo é sempre mais difícil. Naquele domingo, no entanto, melhorou muito a angústia quando recebi mensagem do Daniel no MSN com alguma coisa que ele viu no Orkut. O sorriso que eu fiquei… Não sei, é difícil de explicar. Ele sempre me manda alguma bobagem do Orkut, mas pra mim sempre significa muito que alguém lembre de mim quando vê alguma coisa.
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Eu quero poder me sentir livre logo das limitações impostas a mim por ainda ter uma determinada idade, por ainda viver de uma determinada maneira... Tem dias que eu realmente sonho em poder voltar pro curso de pintura, só pra poder experienciar de novo a sensação de que sou alguém que consideram importante. Que pode transitar entre pessoas imponentes. Ao mesmo tempo, me dá conforto poder transitar entre os meus. Mas... Eu queria poder passar dessa fase logo. Não me sentir sozinha de novo. Me sentir caminhando e ocupando espaços de igual para igual dentre pessoas grandiosas. Queria ser grandiosa de novo, como eu fui quando peguei o certificado do curso de artes aos 12 anos.
Bom... Enquanto isso não chega, eu me contento em estar somente entre outros iguais a mim. Me contento em observar como vão os meus amigos.
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Na quarta-feira, enfim, tivemos o dia das profissões. Um chef de cozinha, um detetive e uma advogada. Grande diversidade. Mas o que me animou mesmo foi ver que, assim que as palestras acabaram, Daniel, Paul e Ryuko foram juntos até a lanchonete perto do colégio. Me dá frio na barriga só de imaginar o que eles devem estar aprontando, e me sinto muito feliz de estar fazendo parte disso (de certa forma).
Espero que, de noite, quando eu entrar no MSN, o Daniel esteja lá, pra me contar os detalhes desse encontro tão secreto.
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Capítulo 1 - Alan's Psychedelic Breakfast
(Narrado por Paul)
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Faz quase um mês que as aulas do Ensino Médio começaram.
Dentre todas as possíveis coisas que eu poderia estar sentindo, a mais latente é o cansaço da rotina. Não que eu não tivesse já uma rotina chatíssima no 9º ano, também. Todo dia era sempre muito parecido e corrido.
Acho que eu simplesmente não gosto tanto da rotina de agora de forma geral. Mas não foi sempre assim, sabe? Lembro que eu funcionava muito bem quando as atividades do meu dia eram todas super espaçadas, quando eu era criança: de manhã ia pra escola com o Levy, voltava pra casa na hora do almoço, comia, assistia um pouco de TV, ia pro curso de música, saía do curso e encontrava o Levy no mercado municipal pra ir pro coral, e no caminho tomávamos algum suco que estivesse disponível na barraca da Dona Antônia. Depois do coral, chegava em casa e só me preocupava em existir. O dever de casa da escola eu só fazia aos fins de semana.
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Essa rotina ficou um pouco diferente a partir do 8º ano, e no 9º ano eu passei a simplesmente me dedicar mais à escola. Eu não gostava muito da escola, mas eu também não queria ser um aluno ruim; então, tentei ser um pouco mais aplicado. Já que, se dependesse do Daniel, da Gabi e do Levy, eu não teria chegado muito longe. A Gabi se garante, mas os outros dois… é melhor eu nem fazer julgamento moral sobre isso.
O principal ponto da minha rotina nesse ponto da minha vida são os momentos que separo para comer. São sempre momentos coletivos, pois de alguma forma eu consegui casar meus horários com a minha família, e na escola todos já comem juntos de qualquer forma.
De manhã, geralmente sento com meu pai na cozinha para tomar café, e Carl fica na sala fazendo barulho com a televisão. Por causa do barulho insuportável que ele faz vendo TV e rindo, eu sinto dificuldade até de me concentrar no ato de me alimentar. Meu pai por alguma razão já parece anestesiado pela chatice do Carl e foca só no café preto e na porta da varanda da sala.
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Hoje, no entanto, foi diferente. Carl foi dormir até mais tarde pois vai ter folga lá na firma que ele trabalha. Então, sentamos só eu e meu pai. Ele realmente não fala comigo há um bom tempo, então o café de hoje foi bastante silencioso. De certa forma, eu prefiro assim. E com o silêncio, pude perceber algumas coisas do meu pai que eu não havia percebido antes - enquanto ele tomava o café preto, ele também murmurou alguma canção. E olhando pra porta da varanda, sinto que o que ele tenta perceber é o clima e a temperatura do dia. E isso era uma coisa que lembrei de ele ter comentado que minha mãe fazia todo dia, na nossa casa em Dublin: ela saía até o quintal, antes de todos acordarem, e observava o céu. Depois, acordava meu pai e dizia pra ele como possivelmente seria o clima no dia, para que ele preparasse ou não um casaco para ir trabalhar. Exatamente depois do café da manhã, eu via meu pai sempre indo direto até a varanda, e depois até o quarto dele separar a roupa do trabalho.
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Nosso café foi o mesmo de sempre: sanduíche com salada de tomate e café preto. Mas por causa do silêncio, da calmaria, sinto que tive um pouco mais de qualidade do que normalmente tenho. Depois do café, separei um sanduíche pro Levy levar pro colégio, e deixei na porta dele. Ele sempre sai 10 minutos depois de mim, então acabo não esperando mais ele pra ir pra aula. Normalmente, agora nos encontramos com mais calma só à noite, já em casa.
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Depois, no colégio, os momentos que tenho que envolvem comida são quando chego e encontro parte do pessoal aproveitando pra tomar café lá na cantina. Lógico que uma dessas pessoas é o Daniel, já que ele sempre acorda em cima da hora. Ele mora perto (precisa atravessar a ponte sobre o rio de Copperdale pra chegar, mas isso leva no máximo 15 minutos da casa dele), mas ainda assim sempre atrasa um pouco, e por isso precisa pegar o café na cantina. É sempre assim. Eu passo pela cantina e lá está ele, com uma cara horrível de sono, e a Gabi ao lado dele mexendo no celular ou desenhando no caderno dela.
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Recentemente, algo que me animou nessa rotina foi a presença da aluna nova, Ryuko. Esses momentos silenciosos na cantina de manhã, em que Daniel pegava café preto, Gabi ficava desenhando e eu sentava ao lado deles com meus fones de ouvido até a aula começar, foram preenchidos com essa presença eufórica da Ryuko. Normalmente, ela sempre traz uma garrafinha de suco mega personalizada com as coisas que ela gosta, como desenhos de moranguinho ou estrelinha, ou coelhos. Não é nada tão especial assim, mas ajuda a deixar todos nós com uma energia boa e renovada para começar o período de aulas. Sentamos os 4 juntos na cantina e conversamos sobre como foi o dia anterior. É assim na hora do almoço também, com a inclusão do Levy às vezes, que quando está mais de bom humor vem sentar com a gente.
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A Ryuko é realmente uma pessoa muito interessante, e quanto mais tempo passo com ela, mais tenho certeza disso - há simplesmente muitos detalhes sobre ela que, quando eu paro pra prestar atenção, percebo que são essenciais para compreender mais sobre ela e a personalidade dela. Sem contar que eu consigo me identificar facilmente com ela na questão de ser tratada como uma pessoa estrangeira, mesmo ela sendo daqui do nosso país. No meu caso, pelo menos há uma razão concreta para me verem como alguém diferente, já que eu de fato sou imigrante. Eu noto que para a Ryuko é muito importante que ela seja reconhecida como alguém que já nasceu aqui, e que ela fica muito chateada quando pensam o contrário.
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Daniel e Gabi já se afeiçoaram muito a Ryuko - um dia, a riquinha pentelha da nossa turma, Scarlet, resolveu encarnar nela sem um motivo real; aliás, ela faz isso com quem ela tiver a chance de fazer, não há uma razão por trás, é só muita vontade de ser inconveniente. Ela encurralou Ryuko no corredor dos armários e ficou questionando ela sobre o jeito que ela se vestia, e sobre as figurinhas que ela tinha colocado no armário. Como eu já esperava, a Ryuko soube se defender, mas pra Gabi e pro Daniel isso não era suficiente, já que a história deles de ódio da Scarlet vem de tempos remotos. Saindo da aula com o Levy, tentei encontrar o pessoal no pátio, e lá estavam Gabi e Daniel gritando na cara da Scarlet, mandando ela tomar conta da própria vida. Scarlet sempre faz pouco caso dessas situações, e nada nunca acontece com ela por importunar os colegas. Nesse sentido, dou muita justificativa pro ódio que meus amigos sentem dela… Difícil mesmo é não sentir.
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Apesar de todos esses percalços, e de estar vivendo uma rotina estressante, eu gosto um pouco dessa sensação de poder estar compartilhando esse momento com pessoas que eu gosto e que gostam de mim. Foi o que fiquei pensando hoje na hora do jantar (que não pode ser silencioso que nem o café da manhã, pois o Carl já havia chegado do trabalho), sentado à mesa de novo com meu pai e seu rosto misterioso de esfinge, que não troca uma palavra com ninguém. Hoje quem preparou o jantar fui eu, inclusive - não quis demorar muito então fiz macarrão com queijo. Pelo menos, tudo indica que meu pai achou gostoso; quando ele não gosta da comida, essas são as únicas palavras que ele troca comigo: “você devia aprender a cozinhar igual aprendeu a cantar”.
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Como não tinha nenhum dever de casa ou pesquisa pra fazer pra amanhã, antes de dormir eu preparei o almoço pra levar amanhã pro colégio, e deixei um pouco pro Levy também. Esses tempos ele não tem comido muito, o que me deixa preocupado. Espero que ele também esteja conseguindo aproveitar o ensino médio, mesmo que só um pouco.
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História de Ryuko Nakamura
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“La-ran-ja-da do-ce, la-ran-ja-da do-ce”… Todo dia o mesmo exercício. Executar um movimento de arcada ao violino que lembrasse o movimento silábico da frase “laranjada doce”. Um substantivo e um adjetivo. Laranjada doce. Laranjada doce… Eu sinto que repeti esse exercício tantas vezes que eu já não sei mais o que essa expressão significa. Já ouvi de uma colega de escola que esse fenômeno se chama "saciação semântica" - quando repetimos vezes demais uma palavra até ela ir ficando rarefeita.
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Meus pais me colocaram em um curso de violino perto da minha escola quando eu tinha cerca de 7 anos. Eu cheguei lá, no primeiro dia de aula, com meu uniforme da escola japonesa para estrangeiros, a mochila nas costas, carregando o violino com a outra mão. Pra mim, por mais que eu gostasse muito de música, aquela experiência toda era muito mais sobre estética do que sobre música: sobre como eu me sentia interessante sendo uma menina que tocava violino, sobre como eu me sentia bonitinha indo fazer as aulas com meu uniforme escolar de estrangeira. Eu acho que meus pais nunca compreenderam essa sensação que eu tinha quando ia pras aulas da professora Shimizu, que era super-mega-ultra adepta do método Suzuki. Minha mãe, Sakura, era fascinada com esse método: dizia que era algo positivo do Japão que ela via ser difundido pelo mundo, e que era importante pra ela que eu participasse disso, pra que eu pudesse ver o país que meus pais nasceram como um lugar que contribui para a nossa sociedade ativamente - e que essa contribuição era muito maior que tudo aquilo da indústria de entretenimento de lá que chega até nós aqui, em Komorebi, uma província japonesa em um país estrangeiro.
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Estrangeiro… Acho que esse é outro ponto de conflito que tenho com meus pais. Aqui é um lugar estrangeiro para eles, mas pra mim, é o lugar onde nasci. É o lugar que conheço melhor, onde estão todos os meus amigos e todas as coisas que eu gosto e amo. Eu amo as coisas do país deles também, porque faz parte de mim e da minha vida. Mas eu também amo ser daqui. Eu gostaria que eles entendessem que eu sempre serei um “meio-termo”; eu sempre serei uma filha de imigrantes, e não uma estrangeira como eles. Não sei até que ponto eles compreendem essa parte da minha existência, mas sei que seria muito importante para mim essa compreensão.
Música sempre foi algo muito presente na minha vida, fosse por intervenção dos meus pais, que queriam que eu aprendesse música formalmente e me inscreveram em diversos cursos, fosse por mim mesma, que dedico boa parte da minha rotina a consumir música de todos os tipos. Sempre foi algo que me fez muito feliz. Mas teve um momento específico, um dia específico, um dia de mais uma vez tocando “laranjada doce”, que eu percebi e aprendi mais algumas coisas. Coisas sobre mim e sobre a música, e sobre como eu via a música na minha vida, e sobre como eu estava negligenciando todo o resto para me focar em uma atividade que eu não fazia só por mim. Eu fazia isso esperando alguma validação. A única parte que realmente me agradava ali, não era musical.
Um dia, a prof.ª Shimizu passou “laranjada doce” em diversos tons para que explorássemos o braço do violino. Quando chegamos no fá sustenido, eu parei de tocar. Eu olhei pela janela, e me concentrei no movimento de uma flor caindo até o chão. Foi tempo suficiente para o resto da turma acabar o exercício, e eu ter ficado para trás. Eu não troquei uma palavra com a professora. Eu guardei meu violino em silêncio, e saí da aula mais cedo. Eu simplesmente não conseguia mais pensar em nada, sentia minha mente vazia.
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Até que, desesperadamente, eu procurei por alguma coisa que me ocupasse. E o que me ocupou naquele dia, foi uma televisão de um bar com a apresentação de taiko das crianças da escola. Eram as crianças mais velhas, as do 6º ano. Eu estava no 4º ano.
Eu sentei em uma das mesas do bar e fiquei assistindo a televisão fixamente, até que a apresentação acabasse. E ver aquelas crianças tocarem, me fez perceber o que eu desgostava no violino: eu não sentia o ritmo daquilo que eu estava tocando. Parecia etéreo demais, sem corpo. Eu queria algo que me fizesse sentir mais. Eu queria sentir a música, e o violino me fazia sentir limitada.
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Foi nesse dia que voltei pra casa e pedi, na verdade implorei aos meus pais, que eu saísse do curso, e começasse a estudar taiko com as outras crianças da escola.
Levei muito tempo para convencê-los disso, e lembro de ter dado muitos argumentos emocionais, mas o que realmente pegou eles foi o fato de que essa era uma atividade que acontecia na minha escola, e por isso não precisaríamos pagar nada a mais na mensalidade, que já era cara. Por também ser algo relacionado de certa forma ao Japão, sinto que eles ficaram tranquilos.
Eu sinto que essa época em especial da minha vida definiu muitas coisas sobre mim: eu me vejo como uma pessoa que quer sempre viver de forma muito intensa. Isso já me trouxe coisas boas, como o taiko e a bateria, que comecei a aprender a dois anos atrás, mas também já me trouxe sucessivas situações ruins na escola estrangeira. Isso tudo culminou no que eu estou vivendo agora, aos 15 anos: amanhã é segunda-feira, e vou começar a estudar em uma escola nova, em Copperdale. É a mais renomada escola pública do nosso país.
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Me sinto com medo, pois acho que a escola de estrangeiros me deixou em um lugar confortável, e tenho realmente receio de saber o que me espera amanhã. Eu já sei que vão me tratar como estrangeira, mesmo não sendo. Eu já sei que vão fazer comparações. Já sei de algumas coisas que irão supor sobre mim e sobre minha aparência, o jeito que me visto. Mas vou tentar, o máximo possível, continuar sendo a pessoa que eu já sou, e evoluindo ainda mais essa pessoa, me dando oportunidades novas que o medo tenta tirar de mim. Quero viver mais a minha estética, a arte, e tudo que essa nova experiência pode me oferecer. Por isso, amanhã vou chegar na escola com um bom espírito, se for possível…
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História de Daniel Couto
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Eu não sei se tenho real capacidade de me descrever em detalhes. Não sou uma pessoa fechada ou introvertida, mas isso é algo que eu nunca gastei muito do meu tempo fazendo: descrevendo a minha história e a minha personalidade pros outros. Sempre prefiro que venham me conhecer, que tenham suas próprias impressões sobre mim depois de uma conversa.
Talvez eu também pense assim porque me considero alguém com uma história de vida absolutamente normal até agora. Nada muito impactante realmente me aconteceu até hoje, aos meus 15 anos. Vejamos: eu nasci e cresci aqui em Copperdale. A casa que eu moro hoje é a mesma casa que moro desde que me entendo por gente. Minha irmã está no 5º ano, eu estou chegando no Ensino Médio. Meus pais são um pouco excêntricos, mas não tanto assim: minha mãe faz pose de malandra, mas é floriculturista, e meu pai é só mais um assalariado empregado de firma nesse mundo. Não há nada tão especial assim sobre nós que valha a pena meu desgaste em contar nossas histórias, desde as desavenças até os momentos de alegria. É só mais uma família comum.
O que penso que pode me definir melhor como pessoa são as minhas escolhas, as pessoas que estão à minha volta e as coisas que eu gosto de fazer. E com certeza absoluta a coisa que eu mais gosto de fazer é tocar guitarra. Meus pais têm um apreço especial por música no geral, e eu ganhei uma guitarra de natal depois de falar com meu pai que queria começar a aprender algum instrumento. Acho que ele ficou emocionado quando eu disse isso, pois apesar de tanto meu pai quanto minha mãe serem fissurados por rock, eles são péssimos em tudo de musical que eles se propõem a fazer. Uma noite de karaoke com Euclides e Teresa é certeza de dor no ouvido, de tão desafinados que eles são. Meu pai deu uma suada pra conseguir essa guitarra pra mim. Ela é simples, mas bonita, por ter vindo do desejo real de um pai de querer presentear o filho com uma coisa que os dois amam. Então eu valorizo muito isso tudo. Não sei se um dia vou virar um rockstar porque isso já seria ambicioso demais, mas eu tenho certeza que vou envelhecer tocando guitarra, custe o que custar.
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Apesar de amar muito tocar guitarra, eu sinto que poderia ser melhor. Meu amigo gringo, o Paul, estuda música desde criança. É daqueles que tem talento pra coisa, mas não aproveita. Eu não sinto que sou talentoso com a guitarra, eu acho só que eu gosto muito e isso me influencia a querer tocar o tempo todo. Mas isso não significa necessariamente ser bom, sabe? Eu quero ficar bom que nem o Paul. Ele ACHA que não é bom, porque ele não se mistura com aquele pessoal da música clássica e de concerto, mas eu tenho certeza que ele é bom, porque vejo o quanto ele é diferente do resto do pessoal que estuda música lá na escola também. Ele não é só amador. Eu consigo sentir isso.
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É que nem a minha outra amiga, Gabi. Ela é filha de professora e sonha em ser artista visual. A gente se conhece desde pequeno, e ela sempre desenhou e pintou. Ganhou o primeiro cavalete quando a gente ainda era moleque, pra ela poder começar um curso de artes visuais lá em San Myshuno, na Galeria Casbah. Ela terminou esse curso cheia de honrarias. Os quadros que ela pinta hoje em dia são simplesmente incríveis, eu fico emocionado quando vejo o que ela faz, até. Ela fica me zoando por eu ficar emocionado assim, mas falo muito sério! Eu fico chocado em como quem é bom de verdade no que faz fica se rebaixando. E é por isso que eu quero ser bom também: quero provar pros meus amigos e pra quem mais for preciso que ser bom não é questão de dom, mas sim questão de estudar e acreditar no que a gente faz. Eu sonho com isso, de verdade.
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Agora que eu tô chegando no Ensino Médio, eu sinto muita vontade de ser alguém melhor. Não que eu seja alguém ruim, mas eu sinto que poderia ser mais do que isso: mais do que o bobo alegre da turma, mais do que o filho maluco dos meus pais, e o irmão rockeiro da Júlia que todo mundo da escola dela fica zoando. Quero que as pessoas lembrem de mim por ser alguém memorável. Vamos ver até onde essa vontade me leva; tenho 3 longos anos pela frente para descobrir mais do meu potencial.
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História de Paul Hent
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Dublin, Irlanda, 1997. Foi nesse lugar, e nesse ano, que perdi minha mãe.
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Eu tinha só 4 anos quando minha mãe, Iris, faleceu. Eu não sabia direito o que isso significava, mas comecei a entender quando eu já não via mais ela pela casa. Meu pai contou que o trabalho levou ela da gente. Só fui entender que ela havia morrido trabalhando agora, com 15 anos. Dez anos depois. Meu irmão também se recusava a tocar no assunto. Não sei exatamente que tipo de proteção era essa em cima de mim.
Isso aconteceu em janeiro de 1997.
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Nossa situação financeira nunca foi boa. Compreendi isso melhor ao mesmo tempo em que soube que minha mãe havia morrido em um chão de fábrica, sufocada com fumaça. Ninguém que ganha dinheiro vive assim. Quem ganhava dinheiro não vivia nem no mesmo bairro que a gente, quem diria trabalhando numa fábrica de qualquer coisa que fosse.
Nós nos mantivemos minimamente até março daquele mesmo ano. Tudo ficou mais caótico quando demitiram meu pai dos correios. Meu irmão, que é só 6 anos mais velho que eu, também não tinha condição de trabalhar. Ele estudava e às vezes vendia uns bonecos e bonecas de pano que ele mesmo fazia. Ajudava a complementar um pouco da renda, mas nada perto de um salário.
Foi a primeira revolta da minha vida. Ver meu pai sendo demitido depois de alegarem que "o luto atrapalhou seu rendimento". Sempre tive raiva do meu pai pela maneira que ele tratava nossa família, mas nesse dia eu só senti desespero.
Foi quando meus avós começaram a falar sem parar sobre Evergreen Harbor, uma cidade estrangeira. "Vocês precisam conhecer. Lá o povo sorri, lá existe sol, calor humano. Os meninos, Uriel. Os meninos seriam tão felizes lá!" - Acho que isso foi fazendo casa na cabeça do meu pai, senão eu não estaria aqui contando isso da nossa casa em Conifer. Nunca imaginei que um dia me sentiria mais daqui do que dublinense.
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Chegamos em Evergreen Harbor no início de 1998. Tudo parecia novo e mágico; até a periferia da cidade parecia mais viva e colorida que os grandes centros de Dublin. Ainda era frio, mas não como lá. Lá era estupidamente gelado, e isso gelava o coração de todos. Éramos todos endurecidos por dentro.
Em Conifer conheci o Levy, que era meu vizinho e ia pra escola junto comigo. Ele já não batia muito bem da cabeça naquela época. Mas a melhor coisa que fiz junto com ele foi definitivamente aprender a cantar. Íamos juntos para o coral do bairro também, que era gratuito e a única coisa de "criança normal" que fazíamos juntos. Todo o resto era baseado em pura bagunça e traquinagem - desde sair tocando campainha dos outros no meio de um domingo até montar foguete caseiro pra jogar em quem a gente achasse chato lá do telhado do nosso prédio. Já achava ele bastante perturbado nessa época. Mas, também, com uma vida daquelas...
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Aqui em Conifer meu pai também passou a trabalhar com entregas, mas foi um processo demorado até que isso se estabelecesse. Pelo menos dessa vez nós realmente tínhamos custos mínimos com a escola, já que eu ia para a escola do bairro e Carl tinha bolsa de estudos em uma escola bilíngue. Eu aprendi o idioma daqui muito rapidamente. Já meu irmão... Se bobear até hoje tem dificuldade até com o inglês. Deve ser essa a sina de ser pobre e dublinense - você fica restrito somente a sua língua materna.
Lembro que meus colegas de sala e meus vizinhos achavam bastante impressionante o fato de eu ser europeu mas não ser rico. De certa forma, isso me afastava um pouco da escola, já que eu me sentia tão desajustado quanto me sinto agora. Eu era o menino "gringo", né. Isso perdurou até a 5a série, quando troquei de escola e quando conheci o Daniel e a Gabi.
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O Daniel é um cara bastante excêntrico e popular (de um jeito caótico) na escola. Muito dessa fama vinha de ele ser só muito sem noção. Não sei como ele sempre sentia tanto sono a ponto de até dormir numa prova de matemática - e era recuperação. Além do sono, ele só tinha ideia de doido e falava de bandas de rock o dia inteiro. Lembro que a Gabi zoava ele infinitamente com isso e chamava ele de "doido do punk". E de fato eu nunca conheci alguém tão fissurado em Nirvana, Pearl Jam e Soundgarden quanto ele. No 7º ano ele já começou a usar aquele visual de camisa xadrez, all star e lápis preto no olho. Sem contar o cabelo todo desalinhado.
Lembro até hoje quando o Daniel ganhou a primeira guitarra dele. Nunca fez uma única aula - tudo que ele aprendeu a tocar foi por revista de cifra e acorde. Toda a parte rítmica ele tirava de ouvido. Eu, que tive auxílio educacional a vida toda pra aprender música, ainda acho isso surreal.
A Gabi era filha de uma professora da nossa escola, mas que não dava aula pra nossa faixa etária (ela dava aula para crianças). Isso dava um brilho todo diferente pra ela, como se ela fosse mais "intelectual" que a gente. Como se o tipo de conteúdo que ela consumisse fosse mais "bacana", sabe? Aquela coisa de ser criança bacana, de bairro bacana. Além de bacaninha, ela também adorava desenhar - fez um curso muito chique de pintura na Galeria Casbah, perto da casa dela - e ouvia música tanto quanto o Daniel, mas com uma empolgação diferente; e, também, ela ouvia umas músicas mais atuais. Essa energia de 1995 realmente só emana forte assim do Daniel.
Ela morava em um apartamento todo reformado no Quarteirão das Artes em San Myshuno, que mesmo sendo pequeno tinha um toque clássico de chão de madeira e parede com capitel e rodapé. Enquanto isso, eu morava em um apartamento colado com o do Levy, e o Daniel numa casa um pouco maior, mas também de subúrbio, lá em Copperdale.
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Tive uma pré-adolescência absolutamente normal, e espero que isso se mantenha assim agora que estou chegando no Ensino Médio. Mas já não há como ter certeza - chegou uma nova filha de imigrante na nossa turma que já levou bronca por burlar as regras de etiqueta do uniforme escolar. Parece ser japonesa. Deve morar em Komorebi, suponho. Gabi e Daniel ficaram empolgadíssimos com ela, como se ela tivesse vindo de outro planeta - mesmo ela explicando que já nasceu em Komorebi, e que tudo de japonês que ela tem é só genético. Tenho minhas dúvidas, no entanto; se eu pegasse uma foto de uma daquelas garotas góticas de Harajuko e colocasse a colega nova do lado, eu diria que era a mesma pessoa nas duas fotos. Mas, quem sou eu pra dizer alguma coisa, né.
Só espero sair logo desse lugar de desconforto, enquanto vejo o mundo todo ao meu redor se sentindo bem.
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Três amigos sonhando sobre dias incríveis.
Essa é uma história de ficção sobre três amigos de Ensino Médio, adaptada para o universo de The Sims 4.
Paul e Daniel, amigos de infância, conhecem Ryuko Nakamura, filha de imigrantes que foi transferida para o Colégio Copperdale às pressas após uma temerosa história envolvendo a personagem. Ao se conhecerem, os 3 passam a dividir seus sonhos, suas inseguranças, e uma bela amizade se constrói ao redor do amor que esses jovens possuem pela música.
Essa história é, enfim, sobre música e bandas de rock, mas também sobre ser adolescente, e tudo que isso implica.
-x-x-
Idealizei essa história aos 12 anos, em 2008. Ela era postada duas vezes por semana em uma comunidade de fanfics do Orkut que eu participava. O material que escrevi para a comunidade, se perdeu junto com ela depois de 2013. Hoje, com felicidade, retomo essa história, usando o The Sims 4 como recurso visual e gráfico para ilustrar as aventuras desses três adolescentes que amei ter criado.
Espero que gostem!
Beijos,
  Johnny Dalle
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