Borboleta Azul
Julia C. Marques
No solo negro, ninguém parece perceber os pés que se movimentam. É quase como se eles flutuassem na bruma a medida que a garota de azul, a borboleta com flores na cabeça, gira pelo ar.
Ela se vai, solta, sem qualquer amarra ou dificuldade. É quase como se fosse uma folha, uma flor, algo feito de brisa, e não de carne e ossos.
Seus olhos estão fechados, e ela se esqueceu do mundo por alguns instantes. A plateia se foi, e agora, Luana está sozinha. Ali, naquela imensidão escurecida como o céu de uma noite sem estrelas, existem apenas ela e as notas. A música emana por cada poro de seu corpo, e ela se deixa levar, porque dançar a faz se sentir a mais livre das criaturas.
Pelos instantes formados de acordes, tudo parece fazer sentido. O mundo caótico parece ter encontrado algum tipo de ordem enquanto os braços da borboleta se erguem, como se suas asas se abrissem, prontas para alçar voo, ansiosas para alcançar as nuvens.
É um único corpo, uma única bailarina, mas naquele momento, é quase como se ela preenchesse todos os espaços, como se fizesse parte de tudo.
Na plateia que seus olhos não veem, os olhares permanecem vidrados, registrando cada mísero movimento. É o mundo em suspenso, preso no transe de uma música, embalado pelos passos da bailarina, como se ela fosse a pastora de um rebanho, e os estivesse conduzindo para um local seguro, um lugar onde o mal, seja em qualquer forma ou cor que tenha tomado, não poderá alcança-los.
Ela se espalha enquanto eles se recolhem. Se agiganta enquanto eles se recolhem, uma verdadeira rainha em meio a seus obedientes súditos. A luz se amolda ao seu redor, formando com as sombras um par perfeito, uma verdadeira divindade a brilhar.
A música está chegando ao fim, e os passos, vão se tornando um tanto mais lentos do que antes. Está acabando, e aos poucos, a realidade se infiltra no sonho que durara instantes insuficientes.
E agora, o que virá agora?
Os olhos, tão negros quanto a mais escura das noites frias, jazem abertos como para um último olhar para o mundo. O som, diferente e estrondoso, corta a melodia que inunda as paredes acortinadas, e então, instantaneamente, quase como um passe de mágica, o que era sonho se torna pesadelo.
Com as asas cortadas e o vermelho a manchar o azul que cobre seu corpo, a borboleta azul se choca contra o chão, antes uma luz, agora apenas um ser humano. O ar se esvaiu de seus pulmões, e a dor que a atinge parece vibrar por seu corpo como as notas de uma horrenda e nova canção. Uma usurpadora, que apaga a beleza de antes para trazer o horror de agora.
O baque é surdo, e as cores se misturam, perdendo-se em seus olhos, apenas um borrão onde antes existia uma verdadeira aquarela.
De uma poltrona de veludo vermelho, uma na posta esquerda, na fileira mais próxima ao palco, levantou-se um cavaleiro de cartola, os olhos desfocados e o sorriso debochado a dançar em seus lábios.
Dizem por aí que a vingança tem um sabor doce, e nesse momento, é exatamente isso que ele experimenta, sem se importar em esconder ou fugir, sem se incomodar que o vejam como está agora, divertindo-se com seu ato cruel. Como um caçador habilidoso, fora ele quem vencera. No fim daquele jogo, ela caíra, e ele está ali, de pé, desfrutando de seu sucesso.
A risada que ecoa de seus lábios é sinistra, macabra, e os olhos da borboleta, agora apenas dois globos de vidro, encaram o teto do palco, o negro que antes a acolhia, mas que agora é apenas um ilustre desconhecido.
Aquela era a sua chance de brilhar. Era o seu momento, e por alguns minutos preciosos, ela fora a estrela. E para que? Somente para que sua queda fosse maior?
Ela não chegara a vê-lo, mas agora todos os outros se voltam para ele. O homem que ri em meio a dor, cujas lágrimas se misturam ao riso. Ela o dispensara. Jogara ao vento as promessas que eram para ser eternas, e agora, quando ela estava prestes a voar para longe, ele a estava trazendo para o chão novamente, apenas se certificando para que as coisas fossem como sempre deveriam ter sido.
Desde o início, não é? Desde o começo, era para permanecerem juntos.
Ela prometeu, e agora, com o riso desvairado em seus lábios, ele fazia a sua parte para cumprir tal promessa.
- Você prometeu Luna. Você prometeu, e eu sei que tudo o que me disse foi da boca pra fora. Eu...eu sei que você me ama. Sei que está esperando por mim, querida. Não se preocupe, estou indo te encontrar.
Diante de uma plateia estupefata, um novo estalo corta o ar. Desta vez, quando o silêncio é rompido, um novo corpo atinge o chão. Desta vez, é o de um homem quebrado, uma lagarta manchada, para quem o “não” nunca foi uma possibilidade, e a escuridão é mais confortável que a luz.
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