As sombras de Roberta Cirne
Uma das poucas representantes da nona arte em Pernambuco é Roberta Cirne, roteirista e desenhista das HQs de terror Sombras do Recife, publicadas no site homônimo. Além de cuidar de toda a parte literária e do design, a quadrinista também faz um resgate histórico da cidade. “A pesquisa que eu estou fazendo com os quadrinhos já existe há 19 anos, mas nunca consegui publicá-los por meios tradicionais”, declara, ao mencionar que a internet teve papel fundamental no seu trabalho. “Tudo o que produzi foi lançado online. Isso fez com que o projeto chegasse a todo Brasil, de um jeito que ainda me surpreende”, afirma. Atualmente, Roberta se dedica inteiramente aos quadrinhos, mas a trajetória foi longa para isso. “Me formei como arte-educadora e passei a dar aulas para poder me sustentar, mas sempre quis ser dona do meu próprio projeto. Hoje, não leciono mais, graças ao poder que a internet teve na minha carreira”.
Ainda conforme a Roberta, a ideia de criar a HQ surgiu em 1998. A princípio, ela havia pensado em fazer um quadrinho misturando cultura local com vampiros, pois já tinha criado alguns personagens e histórias nesta linha de terror mais globalizado. “Aos poucos fui refinando a história, à medida que lia mais sobre os usos e costumes da cidade, monumentos demolidos e desaparecidos, roupas, personagens pitorescos, doces, usos e costumes, coisas que só Recife tem”, contou, comentando que o material de referência provém de reportagens de jornais, livros encontrados em sebos, fotos e arquivos que ela foi juntando ao longo dos anos. “Ainda tenho guardados os manuscritos desta época e a pesquisa histórica que fiz, pois se trata de material praticamente inédito na internet, de livros que nunca foram reeditados em dezenas de anos”.
Neste momento do projeto, Roberta está narrando como cada assombração surge, em suas distintas épocas: Boca de Ouro, em 1913; A Velha Branca e o Bode Vermelho, em 1885; Branca Dias, em 1598; Papa Figo, em meados de 1850 etc. E para criar essas histórias ambientadas no Recife do passado, a quadrinista tem como objeto de pesquisa mais de 100 fontes literárias, como as obras de Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Mário Sette, Pereira da Costa e Antônio Gonsalves de Mello. “O que eu quero adicionar à ideia dos quadrinhos é a presença de textos extras, ou glosas, que podem ser lidos juntos ou em separado, mas que aprofundam a experiência da HQ. Estes textos serão paradidáticos, e contarão a história da cidade”.
Atualmente, Roberta está publicando a HQ do Boca de Ouro, que é um condutor de bonde de burro no Recife de 1913 - período em que a cidade passava por reformas e mudanças em seu transporte urbano. Humilde e com os dentes estragados, ele sonha em ficar com a mulher que ama, que é casada. Quando o jogo do bicho chega na cidade, Boca de Ouro resolve entrar na dança. Ele torna-se o maior bicheiro de Recife, coloca uma dentadura de ouro e se casa com a mulher amada, após assassinar o marido dela. O que ele não sabe é que a história tomará um rumo inesperado e terrível. “Usei a lenda do Boca de Ouro, que aparece às pessoas nas ruas de Recife como uma espécie de zumbi, e aproveitei para passar pelas reformas da cidade em 1911/1913, a demolição do porto e a vida noturna dos cafés da Praça do Diário (surgimento do jogo do bicho e a boemia do início do séc. XX na capital pernambucana)”. A HQ tem 18 páginas.
Recentemente, Roberta adaptou uma lenda nunca antes trabalhada e de pouco conhecimento geral: A Lenda do Palhaço do Coqueiro do Janga, que lida com o medo de palhaço. Um assunto bem atual, quando se leva em conta os ataques de palhaços nos Estados Unidos e produções cinematográficas como It: A Coisa. A HQ narra a história de um palhaço que, não conseguindo fazer ninguém rir, enlouquece e sai matando as pessoas que não o acham engraçado. “Cada HQ de assombração encaminha para uma junção, mas por enquanto vamos apresentando os personagens. É um universo em expansão, com muita coisa esperando para aparecer”, antecipou a quadrinista.
Confira a entrevista e conheça um pouco dos caminhos que levaram Roberta à Sombras:
1. Roberta, quando e em que circunstância o desenho entrou na sua vida?
Eu sempre adorei desenhar. Na minha casa, ninguém era artista, com exceção de uma tia por parte de pai. O nome dela era Alba, ela costumava fazer bonequinhas de papel desenhadas para mim. Com o tempo, eu mesma comecei a desenhar minhas próprias bonequinhas, e descobri sozinha, por observação, como projetar em perspectiva, usando distâncias de objetos. Mas foi esta minha tia, que admirei por toda a vida, que me mostrou os primeiros passos nas artes.
2. Na infância, você foi desestimulada ou estimulada a desenhar? Tinha acesso a quadrinhos quando criança? Se sim, de que tipo?
Assim que comecei a demonstrar interesse pela arte, meus pais deram o maior apoio. Incentivavam, davam materiais de arte para mim. As minhas melhores lembranças são as de receber, todo natal, livros (sempre adorei ler) e caixas de lápis de 48 cores da Faber-Castell, e papéis para desenho.
Quadrinhos, eu colecionava. Era fã das revistas da Luluzinha e do Bolinha, mas também adorava ler Almanaque Disney, principalmente as sagas da família pato, de Carl Barks. Tio Patinhas, os sobrinhos e as aventuras no Klondike e Escócia me faziam viajar. Eu mesma fazia minhas histórias em quadrinhos, também. Lembro que criei, aos 7 anos, uma HQ de uma menina que tinha uma boneca que ganhava vida. Fora isso, eu “quadrinizei” filmes que gostei, antes dos 10 anos. Tenho até hoje a HQ de Annie e de Peter Pan que fiz.
“Tive a sorte de minha mãe me apresentar aos heróis que ela costumava ler, como Mandrake e Fantasma”, disse Roberta.
3. Quais são as suas principais referências no desenho? O que pensa do fato de que havia poucos modelos de mulheres a serem seguidos nas HQs?
O mercado de quadrinhos sempre foi predominantemente masculino, então comecei pelo que eu gostava de ler. Como na época só tinha acesso aos “formatinhos” da Abril, li muito X-Men. As histórias de Chris Claremont ilustradas por Marc Silvestri me marcaram bastante, e quando comecei a fazer uma série de HQs com uma amiga, usava como modelo a seguir. Logo depois, me encantei com Alex Ross (Marvel Comics) e comecei a pintar em aquarela.
Um dos grandes problemas, na minha opinião, é que os quadrinhos no Brasil, antes da internet, eram bastante setorizados. Havia “quadrinhos para meninas” até certa idade, depois apenas super-heróis, o que focava no público adolescente masculino. Tive a sorte de minha mãe me apresentar aos heróis que ela costumava ler, como Mandrake e Fantasma. Depois ela passou a comprar pra mim umas edições de encalhe da Ebal. Do Superman, Batman e outros. Li muito X-Men, como já disse.
Em 1992, eu fazia HQs baseadas no RPG Vampiro: A Máscara, dos personagens que jogava em grupo de amigos. E também possuía, junto com outra amiga, um grupo de heróis de um universo distópico. Mas estas HQs eram apenas para nós mesmas e mais algumas pessoas que liam de “cobaias”. Não havia então nenhuma publicação de HQs com “temáticas femininas”. No Japão, há muito tempo já tínhamos as mangakás mulheres, e na Europa quadrinistas mulheres faziam parte do cenário franco-belga. Mas nada chegava de forma distribuída aqui. A falta de quadrinhos ditos “para garotas” de mais idade, não cultivava o hábito de leitura de HQs na maioria das meninas. Então, demorou bastante para que as (poucas) leitoras de quadrinhos de heróis começassem a produzir suas próprias histórias.
4. Existe uma discrepância entre o número de mulheres quadrinistas e a atenção que elas recebem? Cita alguma autora que você costuma ler e que acha que deveria ter mais destaque.
Com toda a certeza esta discrepância existe. Inclusive constatei que a grande maioria das quadrinistas mulheres ficam em casa, e compartilham seus trabalhos apenas com amigas. Que eu saiba, apenas umas três ou quatro (a maioria ilustradoras) estão atuando de forma visível no Recife. Eu sou uma das únicas que trabalha terror no Brasil, mas acredito que temos muito mais quadrinistas. Precisamos trazê-las para fora, mostrar seus trabalhos. Algumas desistem, abandonam os quadrinhos buscando caminhos menos áridos.
Uma das quadrinistas que mais admiro é a Marjane Satrapi, de Persépolis e Bordados. Seu trabalho é libertador, no que concerne aos direitos femininos.
5. Foi forçada a investir numa carreira séria antes de se tornar quadrinista? Ou chegou a fazer outra coisa antes por que não se conhecia o suficiente?
Entrei em crise várias vezes. Desenhar era “bonitinho” quando criança, mas se tornava um “hobby” pouco rentável, segundo meus pais, para se ter quando adulta. Tentei seguir o caminho da advocacia, mas terminei abandonando o curso de direito na UFPE pelo de artes plásticas (meu pai quase teve um treco hehe). Fazer quadrinhos era algo meio sofrido, por amor mesmo. Não dava dinheiro, a princípio. Fazia vários bicos e estágios na faculdade, principalmente porque casei e engravidei em seguida. Nosso núcleo familiar se formou neste redemoinho.
Dentro de um coletivo de quadrinhos, lançamos em 2006 (eu e um grupo de amigos) o primeiro álbum, chamado Passos Perdidos, História Desenhada, pela Sinagoga do Recife. Ganhamos o Troféu HQ Mix 2007 de maior contribuição para os quadrinhos nacionais. Fizemos juntos mais seis álbuns pelo MinC e Fundarpe, mas nenhum deles era roteirizado por mim. Tinha certa liberdade em criar as artes, mas queria mais. Os projetos culturais davam algum dinheiro, na época. Para sustentar a vida de forma regular, me formei como arte-educadora e dava aulas. Todo o conjunto das coisas não era o que eu queria fazer, na verdade. Queria ser dona de meu próprio projeto, e pesquisava sobre Recife desde 1998. Queria algo que me representasse mais.
Abandonei as HQs em 2010, para cuidar de meus pais nos seus últimos anos. Não me arrependo disso, pois esta parada me fez repensar muita coisa. Em 2015, voltei às HQs. A princípio, produzindo aos poucos, para mim mesma, e depois aumentei a produtividade. Atualmente, não leciono mais. Posso me manter, e me dedico 100% aos quadrinhos. São os meus quadrinhos, feitos exatamente do jeito que sempre quis. A internet teve este poder em minha carreira.
“O que falta para as mulheres entrarem de vez nos quadrinhos é a visibilidade”, opinou a quadrinista.
6. Você acha que está inserida num meio particularmente hostil? O que falta para que as mulheres possam ser propriamente incluídas e deixem de ser uma raridade no mercado editoral e nas indicações a prêmios de HQs?
Como meu trabalho é totalmente autoral, não há competitividade, como no caso do mercado americano, europeu ou oriental de quadrinhos. Há o estranhamento, ainda nos dias de hoje, de estar em um meio predominantemente masculino, sim. As mesmas perguntas que me faziam em entrevistas em 93, fazem hoje. Mas está um pouco diferente. Já não é tão fechado. A grande maioria dos produtores de quadrinhos de Recife eu conheço há anos, como é o caso da PADA (Produtores, Artistas e Desenhistas Associados), Eduardo Schloesser, Leonardo Santana,
Milton Estevam, entre outros. São amigos que respeito e que me respeitam, nesta caminhada.
O que falta para as mulheres entrarem de vez nos quadrinhos é a visibilidade, como já disse. Quem faz, precisa lançar na mídia seu produto, sua ilustração, tira, série. A internet é um excelente meio. Divulgar, criar blogs, sites, jogar ao público seus projetos.
7. Qual a sensação de estar contrapondo estereótipos e rompendo tabus com o seu trabalho? Fala um pouco também sobre Sombras do Recife.
A sensação é a melhor que já tive na vida. Sei que sou uma das únicas a trabalhar com quadrinhos, e possivelmente a contar nos dedos da mão direita que trabalha com terror. Estou quebrando este paradigma, e agradando ao público tanto feminino, quanto masculino. Não existe nada melhor que fazer exatamente o que você quer, e receber aprovação dos leitores e fãs do site.
A pesquisa que estou trazendo com as HQs de Sombras do Recife já existe há 19 anos, porém nunca consegui publicar pelos meios tradicionais. Trabalhei em Passos Perdidos, Afro HQ e Heróis da Restauração em parceria com roteiristas e historiadores, então basicamente eu fiz apenas a parte gráfica dos quadrinhos. Já as histórias do Sombras são roteirizadas e desenhadas por mim, então estou cuidando de toda a parte literária, histórica e de design. Demora cerca de dois meses para transformar o roteiro já existente em rascunhos, fazer a pesquisa de vestuário, móveis e ruas (basicamente pegando ruas que não existem mais e resgatando para a topografia da cidade atual). Além do desenho, arte-final e balonagem. Todo o site é criado, mantido e organizado apenas por mim, que ainda cuido da parte de design e SEO.
Temos, na época atual, de saber lidar com tudo, e eu sou bastante curiosa para pesquisar e criar em tudo o que busco. Sempre gostei muito da temática de horror, desde criança, e já escrevia contos de suspense com nove anos. Terror sempre foi a minha área. História da cidade e terror foram escolhas naturais, e poder apresentar e representar graficamente a cidade nesta forma é algo que sempre tive em mente, contar coisas que muitos recifenses desconhecem, passando pelas ruas, pontes, praças, sem desconfiar de toda a história que elas carregam. Não é apenas assombração e o susto pelo susto, é incorporar o medo ao ambiente da cidade, mostrando em cenários ruas que não mais existem, costumes que entraram em desuso. As assombrações do Recife foram por muito tempo pouco exploradas, e acredito que este projeto tem um potencial de resgate histórico imenso.
8. Já passou por alguma situação constrangedora simplesmente pelo fato de ser mulher e quadrinista? Foi subestimada de alguma forma?
Como mulher, já passei por inúmeras situações constrangedoras. Como quadrinista, apenas do ponto de vista do trabalho em si. Certa vez, tentei entrar no mercado americano, mas meu traço foi considerado fraco para dar a energia que os super-heróis precisavam. Pediram que modificasse meu traço, e então, preferi desistir deste mercado. Fui subestimada por ter abandonado a área por um tempo, mas estou cada vez mais disposta a lutar e mostrar que estou aqui para ficar.
9. Qual o papel da internet em relação ao seu trabalho? O que seria dele hoje em dia se dependesse da indústria?
A internet teve papel fundamental. Para começar, tudo o que produzi para o Sombras do Recife foi lançado na net. Isso fez com que o projeto chegasse a todo País, de um jeito que ainda me surpreende. Se ficasse apenas na dependência da indústria, do quadrinho tradicional impresso, talvez não tivesse toda esta repercussão. Estamos para lançar a revista agora em dezembro por apoio da Prefeitura do Recife e Secretaria de Turismo da Cidade, mas o alcance do site é de milhares de pessoas. A revista, pode atingir 1000, 2000 leitores. Por isso, reitero o valor de se lançar na mídia online. Tudo que estou conseguindo começou com a publicação na internet.
10. Busca inserir temáticas feministas nas suas histórias ou tenta desconstruir suas personagens quando as cria? Se sim, acha que faz algum efeito, que está se fazendo ouvida?
Gosto de trabalhar com anti-heróis, e anti-heroínas. Não tenho pena de maltratar os personagens e acredito que tudo é válido para criar uma boa história. Minhas personagens são fortes, às vezes usam de meios pouco honestos, como no caso da Guilhermina, de Boca de Ouro. Não a pintei com cores suaves, pois ela é manipuladora. Personagens densos são mais similares às pessoas, e isso aumenta a empatia do leitor pela trilha de evolução do personagem, seja do sexo feminino ou não.
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