Tumgik
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Os Segredos da Vizinhança #2
CAPÍTULO I: Os Três Ratos Cegos - Parte I
              Pra conseguirem entender mais facilmente, acho melhor apresentar dois dos personagens mais importantes dessa história.
Primeiramente meu irmão, Ariel, é um branquelo de olhos castanhos e cabelos castanhos raspados na máquina 2, dono de uma genuína “beleza padrãozinho” e como é de se esperar, é meio cuzão quando se trata do emocional alheio. Foi preso duas vezes por acusações injustas em seus respectivos contextos (voltaremos nisso). Seu vício no “jogo da faca” (aquele onde um idiota fica batendo a faca entre os dedos o mais rápido que pode, e se não decepar nenhum, vitória!) acabou nos rendendo nossa Kombi, e a maioria dos objetos valiosos inúteis em nosso apartamento. Mora comigo, viaja comigo, fornece comigo, e quase sempre tá comigo onde quer que eu vá. No nosso apartamento, geralmente passa o tempo desenhando ou pintando na varanda, costume que começou na terapia ainda criança. É dois anos mais novo que eu e cresceu comigo em Araí, um vilarejo a uns dez quilômetros a oeste de Santa Lourdes. Quando tínhamos dezesseis e dezoito anos, respectivamente, fomos largados por nossos pais que decidiram que éramos “muito difíceis de lidar” e se mudaram pra outro estado sem especificar onde.
E segundo, basicamente a causa de toda essa situação que vou contar, eu, Cameron. Olhos castanhos, pele branca, cabelo castanho na altura do ombro e um denso cavanhaque. Não sou a melhor pessoa do mundo, mas não diria que estou entre os piores também. Acredito ter um dom… Ou melhor, uma espécie de aura de sorte, pois quase sempre consigo me dar bem, mesmo nas piores situações, mas é claro, que não é como se eu me desse bem sempre, ou como se minha vida fosse tranquila, mas acho que vão entender o que quero dizer. Como já disse, trabalho com meu irmão, como “roadies”, e fornecedores em toda Santa Lourdes. Passo muito do meu tempo estudando a história dessa cidade, por ser o que me faz admirar tanto essa realidade que me cerca, e isso vai desde conversas com nossos clientes à visitas regulares na biblioteca local; Isso, quando não estou tentando conseguir uns trocados extras com outros pequenos trabalhos, a maioria também considerada ilegal, pra ser sincero.
              Nas últimas horas de uma tarde de sexta, eu e meu irmão preparávamos nossas roupas e o equipamento para um grande evento em que DJ Praga, nosso insuportável “chefe” e colega de quarto, tocaria durante o fim de semana. Naquele mesmo momento, deixando um corpo para trás após uma breve parada na estrada até a cidade, três homens seguiam viagem sem peso algum na consciência, um grupo de criminosos internacionais (que conhecíamos de uma situação anterior, em outra cidade), conhecidos no mundo do crime organizado como Os Três Ratos Cegos. Empregados de um poderoso traficante e assassino internacional, o Raposa, cada um deles integrava o grupo por possuir grandes habilidades para papéis específicos durante os trabalhos.
O mais velho era Richard “Ric” Marques, o líder coroa e geralmente motorista do trio, quem tentava encarar as situações de forma mais bem-humorada, apesar de geralmente ser o responsável por resolver os problemas quando o clima esquentava. O segundo, Gustavo “Gus” Rizzo, parecia uma espécie de jovem ciborgue parrudo, era o atirador de elite frio e ambicioso da equipe, devido ao seu treinamento militar, era responsável por eliminar alvos a distância, e dar cobertura para a equipe em campo aberto. E o terceiro, Carlos Eloi, não era nada além do sociopata engomadinho de meia-idade do grupo, certamente o mais violento e explosivo dos três, responsável por localizar alvos e fazer os serviços mais sujos, que requerem mais sangue frio. Antes dessa, o grupo teve várias outras formações ao longo dos muitos anos de sua existência, membros entraram e saíram por diversas razões, alguns vivos, mas não a maioria.
Nós ainda não sabíamos naquele momento, mas as razões da vinda desses três à Santa Lourdes tinha relação com a gente e alguns conhecidos nossos.
              Nos próximos dias, Praga tocaria na famosa boate GAL, popular há mais de 30 anos por ser um grande símbolo para a cena LGBT+ de Santa Lourdes, mesmo em épocas mais conservadoras da cidade. Eu já conhecia bem aquele lugar, além de frequentá-la desde o fim da adolescência, quando ainda exagerava um pouco na maquiagem e nos sintéticos, o velho alemão dono do lugar, Andre Galler, começou a comprar comigo a erva dele e de seus funcionários para ajudá-los durante a correria e o estresse dos dias mais pesados. Ao anoitecer, fomos para uma festa prévia no local.
Nós três ficamos quase toda a festa na área de fumantes na cobertura do pequeno prédio onde era a boate. Enquanto Praga puxava o saco de um grupo de velhos produtores ricos que eram patrocinadores em potencial, meu irmão e eu fomos para a sacada observar o movimento da rua enquanto conversávamos. Acendemos um dos últimos baseados de White Widow da nossa parcela pessoal do último estoque. Fumamos em silêncio por um momento, e então refletimos sobre nosso problema com a plantação.
      – Cê acha que dá pra pagar uma estufa nova só com o que a gente vai fazer vendendo isso aqui? – perguntei para Ariel.
      – Sinceramente, a gente vacilou muito com essa. – ele respondeu – Além das perdas, esse incêndio com certeza chamou muita atenção. Eu acho que é melhor a gente ficar mais discreto por um tempo, mano.
      – Mais discreto? Como assim, Ariel? A gente tem proteção, e não é como se a gente tivesse anunciando que vende maconha abertamente na internet.
      – Mas é como se você tivesse, nesse momento, falando em voz alta sobre o fato da gente vender maconha, com um monte de estranhos em volta dos dois.
      – Como assim estranhos? Todo mundo aqui conhece a gente, guri.
      – Exa… – ele quase gritou, então se conteve, olhou em volta e voltou a atenção a mim – Exatamente! – ele falou ficando com a voz baixa, mas nervosa – A gente precisa ser um pouco mais discreto, Cam. A nossa amiga na polícia deu um jeito, mas tenho certeza que alguém lá dentro ainda tá curioso pra saber quem tava por trás das plantas. Sente o cheiro dessa parada na sua mão, agora imagina uma plantação inteira disso queimando, todos os policiais e maconheiros que pisaram o pé naquele terreno, ou em qualquer lugar a alguns quilômetros dele, certamente sabem a qualidade disso, e alguns deles possivelmente sabem que nós somos os únicos com acesso a esse tipo de semente na cidade. Se alguém que tava lá sentir até mesmo esse cheiro agora, pode ser o bastante pra incriminar a gente. Desculpa se to parecendo paranoico, mas pra isso acabar com o nosso negócio basta um desses abrir a boca pra pessoa errada!
Ariel tinha toda a razão, apesar de que logo essa preocupação seria uma das nossas menores em algum tempo, eu estava relaxando um pouco e ficando cada vez mais descuidado, confiando que meus contatos me livrariam de qualquer situação, mas como um bom irmão mais velho, certamente eu não poderia dar a razão pra ele naquele momento, então respondi com um sorriso no rosto:
      – Vai tomar no seu cu, guri! A gente já passou por situações de risco muito mais diretas que essa, não vai ser por causa de um descuido assim, que devo reiterar que não vai se repetir, eu prometo, que vamos botar todo o esquema a perder.
Ariel me encarou com expressão incrédula por alguns instantes.
      – Ah, me respeita, Cameron! – ele me respondeu segurando o riso – Você sabe que eu to certo, mas nunca vai admitir... E para com essa porra de me chamar de guri, eu nunca gostei disso.
Ariel então parou, olhando em choque fixamente para a rua, com clara expressão de surpresa em seu rosto e a respiração nervosa. Olhei na mesma direção e vi um carro estacionando na quadra ao lado. Era de um modelo diferente do último, dessa vez um Impala, mas nós sabíamos a quem pertencia no momento em que avistamos, sentimos a atmosfera maligna que os acompanhava, porém continuamos sem desviar o olhar, no fundo do peito torcendo para que estivéssemos errados; Infelizmente nossa suspeita foi confirmada quando vimos os três abrindo as portas e descendo quase que simultaneamente.
Muito diferentes desde o nosso encontro anterior, mas pra nós inconfundíveis. Ric vestia um grosso paletó preto sobre uma camisa de lã branca, luvas de pilotagem de couro preto, e uma calça social preta. Gus, segurando uma sacola de viagem em sua mão esquerda, vestia um sobretudo de algodão cinza escuro sobre uma camisa social preta, cachecol cinza claro, sapatos e luvas de couro marrom e calça social larga preta. Eloi vestia uma jaqueta jeans escura sobre uma camisa social salmão, luvas de couro marrons e calça social cinza escuro. Embora fosse noite já há algumas horas, por algum motivo, que só eles entendiam, os três usavam seus óculos escuros.
Calmamente eles olharam em nossa direção, esperaram que o movimento dos carros parasse por um momento para atravessarem a rua e em seguida entraram na boate. Eu e meu irmão nos olhamos confusos por alguns momentos, tentando pensar em algo pra falar, mas com tantas perguntas passando em nossas cabeças ao mesmo tempo, mal conseguimos externar duas.
      – Mas… Os… Esses três? – Ariel questionou gaguejando.
      – Na nossa cidade? – completei, igualmente chocado.
Eloi e Ric chegaram na cobertura, e rapidamente vieram em nossa direção.
      – Ric! Eloi! Que bom ver vocês. – falei me virando para eles.
      – Não, nem começa, bebê… – sorrindo para mim, Eloi parou bruscamente de caminhar e discretamente mostrou seu revólver por baixo da jaqueta  – A gente vai do jeito fácil, ou prefere que eu bagunce um pouco essa cobertura pra te incentivar?
      – Relaxa querido, não precisa de drama, vocês acabaram de chegar. – comecei a caminhar – Vamo de boa lá pro camarim, tá bom? Eu tô com a chave.
Ric e Eloi sorriram e se viraram em direção a porta de onde vieram, caminhando atrás de nós enquanto eu trocava olhares com Ariel. Chegando no camarim, atrás do palco no primeiro andar, assim que destranquei a porta Ric pegou sua faca dentro do paletó, apontou-a para fora e só disse “Bora! Circulando!”. Rapidamente uma dupla de DJs que estavam ali com alguns fãs cheirando carreiras imensas de cocaína, levantaram-se e saíram rindo sem questionar, ainda limpando seus narizes e deixando os restos sobre a mesa; Ao fechar a porta atrás de todos, Eloi me empurrou na pequena poltrona de couro próxima à entrada, sacou a arma e apontou-a para a parede do outro lado do cômodo, sinalizando para que meu irmão encostasse.
      – Vamo lá Cameron, poupa o nosso tempo, certo? – Ric sorriu para mim e sentou no sofá vermelho a minha frente – O quê você pode me dizer sobre Edson Plata? – Ric perguntou – Perceba que a gente cruzou um longo caminho pra te fazer essa pergunta especificamente, então pensa bem no que você vai responder.
Parei por um momento antes de responder. Olhei para Ariel. Me ajeitei na poltrona e respondi:
      – É o dono da joalheria de Rosa Cristal. – respondi nervoso – Sua loja é bem perto de onde a gente mora.
      – Tô sabendo – Eloi disse, segurando sua arma firmemente, já um pouco alterado – Mas a gente não quer saber quem ele é atualmente, temos interesse mesmo em quem ele já foi, sabe do que to falan...
      – Como vocês sabiam onde a gente tava? – Ariel questionou interrompendo-o.
Os dois olharam para Ariel sérios e em silêncio. Percebendo a impaciência deles, chamei novamente sua atenção pra mim.
      – Segundo a filha dele, Edson trabalhava como traficante de armas pras máfias locais, mas as minhas fontes garantem que ele parou há mais de 20 anos. – acendi o baseado que segurava apagado desde a chegada deles, dei um longo trago, então o ofereci para Eloi – Aceita uma bola? É o nosso produto novo.
Eloi, ainda sério, me encarou por um momento, esticou o braço direito para pegar o baseado, e agradeceu com a cabeça.
      – Você deve saber mais que isso, Cameron, por favor, facilita o nosso lado… – Ric disse.
      – Isso é tudo, eu juro pra vocês. – respondi, torcendo para acreditarem.
Ric riu cinicamente
      – Você tem certeza mesmo que o velho parou? – Eloi falou – Não foi isso que a gente soube antes de cruzar meio mundo atrás dessa informação.
      – Sim! Eu juro que isso é tudo que sei, pode confiar. – confirmei novamente, ainda torcendo pra acreditarem.
      – Cameron, Cameron, se a gente descobre que você tá mentindo pra gente… – Ric balançou a cabeça enquanto coçava sua barba – O Raposa vai ficar sabendo, e eu sou um cara gente boa, você sabe, mas ele nem tanto. Inclusive, não falem pra ele que eu disse isso, a gente mal começou a criar uma relação mais próxima.
      – Eu não tenho motivo algum pra mentir pra vocês, acreditem. Nunca deixei de ajudar quando vocês precisaram, certo? Não vejo motivo de tanta desconfiança agora. – levantei da poltrona e comecei a mexer nas maquiagens sobre uma das penteadeiras – E faz o favor de deixar o Raposa confortável na toca dele, as vidas no caminho entre a puta que pariu e Santa Lourdes certamente agradecem.
      – Você sabe bem o motivo da nossa desconfiança, espertinho, mas tudo bem. A gente se vê em breve. – Ric pegou o baseado da mão de Eloi, puxou duas vezes, e o estendeu em minha direção enquanto prendia a fumaça.
      – Podem ficar com esse…  – respondi – Certeza que vão precisar. 
      – Sério? Porra, eu agradeço – Ric sorriu – A gente entra em contato em algum momento. – ele acenou com a cabeça, e sinalizou para Eloi segui-lo enquanto saia.
Eloi fechou a porta atrás deles.
      – Que porra foi essa? – meu irmão perguntou imediatamente – O que o Edson tem a ver com esses malucos?
      – E como diabos eles sabem que temos qualquer relação com ele? – respondi – Você tá certo, a gente precisa ser mais discreto por um tempo. Foda-se a polícia, mas eu não quero ter nenhuma relação com o que quer que eles estejam envolvidos.
Antes de voltarmos para a festa, eu continuei no camarim com meu irmão, pensando no que tinha acabado de acontecer. Nada do que falei era mentira; O dono da joalheria Ouro de Tolo ainda traficava no porão de sua loja, mas de fato não fornecia pra máfia há mais de 20 anos. Seu negócio, quando rompeu suas relações com os grandes criminosos, passou a ajudar criminosos locais em troca de proteção contra os que pudessem tentar matá-lo por sua decisão.
O motivo de naquele momento eu não ter revelado mais sobre o empreendimento alternativo da joalheria para os Ratos, foi por ter de certa forma o meu próprio envolvimento nele, sendo Edson o responsável pela lavagem de quase todo o dinheiro que passava por nossas mãos já há alguns anos naquela época. Wila Plata, sua filha, também era uma de minhas clientes e amigas mais confiáveis, sempre me ajudou como pôde em algumas situações complicadas. Eu não poderia de forma alguma complicar a família dela.
Após concluirmos nosso trabalho com Praga naquela noite, voltamos pra casa, onde seguimos reflexivos com o que estaria por vir nos próximos dias. Os Três Ratos sempre foram criminosos que vendem a sua imagem, não é costume deles passar por qualquer lugar que seja sem tentar chamar um pouco de atenção de quem possa se interessar por sua capacidade destrutiva de uma força da natureza.
              Imagino que esteja muito claro nesse ponto que nós não somos os “mocinhos” de forma alguma, considerando toda a merda que nossa cidade é por baixo dos panos, e o fato de que boa parte das pessoas com as quais nos envolvemos são criminosos de verdade. Mas apesar de acreditar que o meu negócio tenha diversos fatores positivos a serem considerados, minha intenção ao contar isso nunca foi convencer ninguém de que somos inocentes de algo, muito pelo contrário, vim expor detalhadamente como foi a nossa vida nessa época, sem negar participação alguma que tivemos na desgraça que começou com a chegada desse trio.
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Os Segredos da Vizinhança #1
PRÓLOGO: Negócios em Família
         Eu vivo em um lugar chamado Rosa Cristal, um grande bairro periférico da enorme cidade de Santa Lourdes, conhecida atualmente pela sua forte cena cultural, além de suas diversas atrações turísticas. Por outro lado, o que realmente me atraí nesse lugar é um fenômeno que sempre acontece (arrisco dizer que desde sua fundação) o qual até hoje não consigo explicar direito: a absurda quantidade de figuras peculiares atraídas por essas ruas.
Para exemplificar melhor o que quero dizer, vou começar contando algumas coisas sobre um mercadinho na esquina da rua onde moro aqui em Rosa Cristal que se chama “De Kruidenier” (de cráidenír, pronunciam os funcionários, mas todo mundo da vizinhança chama de “DK”), um pequeno negócio que pertence a Baltasar Brum.
        Há algumas décadas, quando ainda era um pouco mais magro e tinha um grosso bigode castanho em seu rosto, Baltasar abriu esse humilde comércio, buscando gerar um patrimônio digno para sua família. Desde então ele nunca empregou alguém de fora da família, trabalhando no começo do negócio apenas com seu filho Ari, que recentemente havia se casado com Carla (com quem namorou desde o colégio), e precisava de alguma renda fixa.
Anos depois do início do negócio, Ari e Carla tiveram dois filhos, Laura e Victor. Apesar de ter ajudado financeiramente, Ari nunca foi um pai muito presente e, com o passar dos anos, focou cada vez mais em seu trabalho e estudos apenas, deixando sua família de lado. Consequentemente, com toda a sobrecarga gerada em casa, Carla teve os planos para seu futuro frustrados. História comum, mas no mínimo trágica. 
Muitos anos seguiram dessa forma, até o dia em que Carla sofreu um terrível e fatal acidente de carro enquanto viajava com sua irmã. Pouco depois de perder a esposa, ainda em período de luto, Ari recebeu a oportunidade de assumir um cargo de importância numa grande multinacional chamada LED e se mudou para fora da cidade, deixando seus jovens filhos sob a guarda e responsabilidade do avô Baltasar. Os dois sedentários abandonados, desde então passam o dia desperdiçando seus possíveis talentos jogando videogames e fumando baseado atrás de baseado no quarto onde moram, nos fundos do mercadinho, alternando entre si quem fica responsável pelo atendimento durante o horário de funcionamento.
Uma das partes mais interessantes na história deles aconteceu há três anos. Em uma madrugada de sábado, Laura e Victor faziam a faxina após o fechamento do estabelecimento quando foram rendidos por dois assaltantes que perceberam a porta destrancada nos fundos e invadiram a loja, armados com revólveres pequenos. Baltasar tinha, desde a abertura do mercadinho, o costume de nos fins de semana visitar a loja após seu fechamento, para poder pegar o dinheiro da semana e depositá-lo no banco. Para a surpresa dos assaltantes que agiram sem muito preparo, e também dos irmãos que naquele momento estavam totalmente chapados, Baltasar entrou, também pelos fundos, notou algumas coisas reviradas sobre as mesas e em seguida percebeu os assaltantes através do monitor das câmeras. Próximo à entrada dos fundos havia uma grande caixa de produtos defeituosos trocados e, sem pensar muito, Baltasar agarrou um grande rolo de massa feito de mármore que não tinha um de seus cabos e surpreendeu um dos assaltantes com um forte golpe em sua nuca, quebrando sua espinha e matando-o quase instantaneamente. Um golpe desonesto eu diria, e excessivo em diversos aspectos. O outro assaltante (que molhou suas calças observando completamente em choque seu companheiro caindo sem vida ao chão) tentou reagir com um tiro que acertou o braço esquerdo de Baltasar, o enfurecendo ainda mais, logo antes do velho acertá-lo com um pesado golpe no queixo, deslocando assim sua mandíbula e quebrando boa parte dos seus dentes, seguido de outro golpe que quebrou seu nariz e o deixou desacordado. Foi por pouco, mas esse sobreviveu.
Rapidamente Laura chamou as autoridades. Todos os depoimentos foram prestados enquanto o assaltante sobrevivente era levado para o hospital, onde com o impagável esforço de um grupo de jovens cirurgiões, o homem passou por diversas operações para ser salvo e ter seu rosto, desfigurado, reconstruído; As lesões, mais tarde, fizeram com que a família do assaltante processasse Baltasar e o estabelecimento, o que não adiantou, pois a justiça deu razão ao empresário justiceiro.
Na manhã seguinte ao ocorrido, o jornal da cidade noticiava, em letras que saltavam da folha, a manchete “EMPRESÁRIO LOCAL SALVA FUNCIONÁRIOS DURANTE ASSALTO”, de uma notícia contando sobre como “O conhecido empresário da vizinhança, Baltasar Brum, salvou seus funcionários (e também netos) de serem feridos por dois perigosos assaltantes fortemente armados, que forçaram sua entrada na loja”. Apesar de em diversos momentos a matéria deixar clara a popularidade de Baltasar entre os moradores da região, em momento algum dava detalhes sobre sua vida passada, ou o real motivo dessa fama; É possível que estivessem preocupados com a imagem de boa vizinhança que tentavam passar ao grande número de novos moradores, resultantes da recente expansão da cidade, ou, talvez só estivessem preocupados com a segurança do próprio Baltasar, que até onde sabíamos declarava estar satisfeito com sua “vida mais tranquila”; Mas a verdade, que foi escondida por todos os meios que noticiaram o ocorrido, é que aquela não era a primeira vez que Baltasar tinha matado alguém. Na realidade, ouso dizer que suas mãos haviam ceifado centenas antes daquele jovem infeliz.
        Em sua juventude, ainda na casa dos vinte, Baltasar se apresentava formalmente apenas como BB, era protegido por algumas relações dentro da máfia holandesa de Santa Lourdes, que o populou como o responsável (de forma ilegal) pela segurança de todos os bairros ao norte da região, conhecidos hoje como os “Bairros Nobres” da cidade. Por muito tempo ele morou ali, em um humilde apartamento de um antigo prédio de tijolos, mantendo os crimes violentos afastados (a não ser os dele) e possibilitando o desenvolvimento do lugar. BB fazia o pior com os criminosos que incomodavam a população, chegando a executar, de uma só vez, cerca de vinte membros de uma gangue local, desarmados e trancados em um bar. Seus métodos violentos não eram segredo pra ninguém, mas, ainda assim, ele ganhava inúmeras “gentilezas” dos moradores e empresários locais, como forma de recompensa por suas ações “heróicas”.
Nessa época, Elza Cruz, a filha de um viciado que a usou como garantia em uma casa de jogos e acabou a perdendo, foi salva por BB, que matou os vencedores e os traficantes responsáveis pelo lugar. Rapidamente Elza tornou-se uma grande amiga e fiel “colega de trabalho” na vida criminosa do justiceiro. Após alguns meses vivendo um crescente (e pros românticos até poético) romance criminoso, casaram-se, e continuaram com suas atividades por quase mais dez anos, até Elza engravidar e ambos decidirem dar início a uma pacífica vida em família. 
Pro azar dos dois, no mesmo ano, com uma recente mudança no governo, a cidade decidiu que não precisava mais de BB, que então foi levado à justiça. Ele confessou a maioria de seus crimes (mesmo que a sua autoria em vários casos nunca tenha sido escondida), e assumiu toda a responsabilidade, poupando seus companheiros para que Elza pudesse criar Ari sem preocupações; Devido ao ato, Baltasar foi perdoado pelos chefões do crime organizado, mas foi condenado pela justiça a quase três décadas de prisão, sendo libertado após nove por “bom comportamento” (E certamente um bom dinheiro nas contas certas). Nos anos seguintes à sua liberdade, ele decidiu tentar esconder que um dia carregou a antiquada imagem de BB, trabalhando por muito tempo entregando jornais e dirigindo um caminhão de frete até lavar dinheiro o bastante para abrir o mercadinho.
        Mas afinal, todos devem estar querendo saber onde quero chegar contando tudo isso. Veja bem, nas ruas dessa cidade “pacata”, o passado de Baltasar é só uma entre as milhares de histórias curiosas que podemos encontrar em cada esquina. Nós compramos leite e ovos com um antigo justiceiro holandês, e na farmácia, por exemplo, somos atendidos pela filha mais nova de uma misteriosa senhora chamada Helga, que vive em uma mansão de madeira numa chácara ao leste da cidade, e apesar de mal ser lembrada hoje (a não ser pelas crianças que vandalizam seu lar semanalmente) um dia já foi a popular “Hellgrll”, uma das maiores, senão a maior stripper da antiga Santa Lourdes. Gosto de citar também que Hellgrll ficou conhecida no universo da vida noturna por mutilar os genitais dos homens que maltratassem suas garotas de qualquer forma, e fazia questão de deixá-los vivos depois do dolorido processo. Entende onde quero chegar? É claro que nem tudo que escutamos nas ruas é real, as pessoas têm a tendência de deixar os detalhes um pouco mais fantásticos do que realmente são, mas recomendo estar mais aberto a acreditar antes de prestar atenção no que ‘tô contando, a vida nesse lugar é mais impressionante do que qualquer mentira que eu poderia inventar a respeito. Porém, uma questão complicada é: por onde começar?
        Para muitos dos moradores da cidade, eu e meu irmão somos apenas os caras que carregam o equipamento do DJ que mora com a gente (falamos dele mais tarde), mas na realidade, para os verdadeiros conhecedores, nós dois somos os maiores fornecedores de maconha da cidade, ou “traficantes” como dizem os radicais. E é assim que fico sabendo das histórias por trás de cada um: nós sempre tentamos criar certa intimidade com nossos clientes, pois assim como os irmãos Laura e Victor Brum nos contaram o que sabem de sua família, muitos outros clientes têm coisas interessantes para compartilhar; Mas tanto quanto saber de tudo isso acaba nos dando certo poder nas ruas desse lugar, saber demais também pode ser um problema, e é justamente sobre isso a situação que gostaria de compartilhar aqui. Uma história que envolve várias dessas pessoas interessantes, algumas de maneira mais direta e outras nem tanto, uma aventura (ou desventura, por melhor dizer) que chega a beirar o absurdo. Acredito que, por diversas razões legais, talvez eu não devesse falar sobre isso, mas certamente seria injusto guardar tudo para mim quando sei que há quem se interesse. Esse caso começou há dois anos, quando meu irmão e eu tínhamos acabado de perder uma de nossas principais plantações por problemas no sistema elétrico da estufa, que surgiu enquanto estávamos fora da cidade trabalhando com o DJ Praga, durante algumas semanas. Devido à perda, precisávamos vender com urgência o resto do nosso produto estocado pra tentar corrigir o problema. 
Enquanto surtávamos em nossa casa, a alguns quilômetros de Santa Lourdes, três homens (que preferíamos não conhecer) decidiram parar em uma loja de conveniência deserta, na estrada que vem de Vista Azul. Todos removeram seus óculos escuros ao entrar no estabelecimento.
Um deles, de meia-idade, forte, porém magro, de pele branca manchada pelo sol, curtos cabelos castanhos penteados para trás e barba rala por fazer, agarrou uma cesta de compras e aproximou-se da geladeira de cervejas com um imenso sorriso em seu rosto, começando a analisar os preços. Enquanto o mais novo deles, jovem adulto, físico atlético, pele negra, cabelo preto black power médio e barba cheia, alcançou outra cesta e jogou dentro dela alguns pacotes de diferentes salgadinhos das prateleiras, antes de parar para calmamente escolher entre as diversas revistas empilhadas em um grande expositor de ferro. O terceiro, evidentemente mais velho do que os outros, um pouco fora de forma, pele branca levemente enrugada, careca e com barba preta cheia um pouco grisalha, aproximou-se do balcão em silêncio e bateu com o dedo no vidro do expositor de cigarros Orchis sobre o balcão, apontando para os maços de filtro branco, antes de sorrir amigavelmente para o atendente.
O atendente, um pouco desconfiado, analisou os três homens enquanto calmamente alcançava os cigarros no expositor.
    – Quantos, senhor? – o atendente perguntou enquanto via o homem separar algumas notas baixas de um denso rolo de dinheiro que alcançou em seu bolso.
    – Como? – o homem mais velho perguntou de volta.
    – Quantos… – o atendente engasgou brevemente olhando para o dinheiro – O senhor quer quantos maços?
    – Só um por favor, eu tô tentando parar. – o homem sorriu novamente.
O atendente então colocou o maço sobre o balcão e pegou um pirulito em um dos potes para tentar acalmar-se um pouco. O homem pegou o maço, olhou para os produtos nas cestas dos outros dois e soltou sobre o balcão o dinheiro separado, antes de guardar novamente o resto do bolo em seu bolso interno do paletó junto aos cigarros. Alcançou então um jornal enrolado no expositor, o colocou sobre o balcão e virou-se para assistir a televisão presa à parede enquanto esperava. O atendente calmamente alcançou sob o balcão alguns sacos de papel e os abriu entre os dois, jogando o jornal dentro de um dos sacos enquanto, de maneira disfarçada, pegava uma pequena pistola presa logo ao lado das sacolas e a escondia em sua cintura.
No momento em que os homens se aproximaram do balcão e o atendente preparou-se para começar a arrumar as compras (pronto para reagir em caso de assalto), a campainha da porta tocou, sinalizando a entrada de outro cliente e chamando a atenção de todos. Um homem adulto de ascendência latina, de olhos castanhos e cabelos pretos presos em um pequeno rabo de cavalo, chegou distraído falando ao celular, vestindo um uniforme de policial rodoviário.
Todos olharam em direção ao policial até ele parar bruscamente, percebendo a estranheza do local e finalmente se dando conta de todos a sua frente, reconhecendo quase imediatamente os três homens; Ele soltou seu celular e, enquanto movia a mão pra alcançar sua arma e tentar soltá-la da alça de segurança, os três homens soltaram tudo que seguravam (quebrando algumas cervejas e rompendo embalagens), rapidamente sacando suas pistolas automáticas e alvejando o homem com quase uma dezena de tiros, que o arremessaram violentamente para trás, sobre uma grande geladeira de sorvetes, também destruída pelos tiros.
O mais novo rapidamente destruiu o celular com uma forte pisada. Por alguns momentos todos observaram em silêncio a enorme e nojenta poça que se espalhava, resultante do sorvete que derretia em contato com o sangue do policial. 
Ao se virarem para o atendente, ele apontava a arma para a cabeça do homem mais velho, suas mãos tremiam, e suor escorria de sua testa oleosa. O homem, instintivamente levantou as mãos enquanto os outros dois apontaram suas armas para o atendente que, mesmo tremendo, destravou imediatamente a arma.
    – Ei! Ei! Calma! – o homem exclamou preocupado – Vocês ficaram malucos, caralho? Abaixa essas porras dessas armas agora!
Os dois, segurando firmemente suas armas, encararam sérios o atendente.
    – Ei, garoto, não precisa se preocupar. – o homem mais velho disse ao atendente – Vamos conversar com calma, tudo bem?
O atendente continuou segurando a arma com o dedo firme no gatilho.
    – Eu prometo que vou pagar pelos danos… – ainda de mãos levantadas ele calmamente voltou seu olhar ao corpo – E prometo que se você abaixar essa arma ninguém mais vai se ferir. – ele calmamente olhou para os dois atrás dele e com delicadeza sinalizou novamente para que abaixassem as armas – Não somos tão ruins quanto certamente parecemos ser nesse momento.
O atendente olhou para os outros dois homens que abaixavam os revólveres e calmamente começou a abaixar o seu. O homem mais velho lentamente levou suas mãos ao bolso do paletó, alcançou o bolo de dinheiro, puxou um generoso conjunto de notas altas e as soltou sobre o balcão. Quando o atendente guardou novamente a arma em sua cintura para pegar a grande quantidade de dinheiro, o mais velho apontou com o dedo para a câmera sobre a entrada.
    – Onde ‘tão as imagens dessas câmeras? – perguntou.
O atendente, hesitante, olhou para eles com o dinheiro em suas mãos.
    – Olha, nós não temos motivo algum para te matar, garoto, as pessoas como aquele cara ali no sorvete já sabem como é a nossa cara, nós só queremos evitar que saibam detalhes demais sobre o que aconteceu aqui, entende? Além disso se a polícia encontra essas imagens você sabe que não vai poder ficar com o dinheiro que te dei – vendo o atendente ainda em silêncio o homem pegou mais um punhado de notas altas e soltou sobre balcão. – Pronto, também posso pagar a mais pela câmera se te ajudar a decidir. – ele completou.
O atendente olhou para o restante do dinheiro no balcão, lentamente o pegou e guardou com o resto nos bolsos traseiros de sua calça, então abriu uma das portas de um pequeno armário ao seu lado e apontou para um computador ali dentro. Os três levantaram suas armas novamente e dispararam contra a máquina diversas vezes, destruindo-a diante do atendente assustado, que se jogou pra trás e encolheu-se contra as prateleiras. Ao terminarem, trocaram olhares em silêncio, satisfeitos com a destruição da máquina.
    – Obrigado pela colaboração. – o homem concluiu sorrindo, jogando no balcão as poucas notas que haviam sobrado em sua mão e então guardando sua arma em um dos sacos de papel.
O mais jovem alcançou a cesta que havia soltado no chão e seguiu para fora da loja mesmo com os produtos danificados, ainda segurando a arma em sua mão direita. O de meia-idade, olhou com tristeza para as cervejas quebradas aos seus pés, guardou sua arma dentro da jaqueta e rapidamente correu até as geladeiras pra pegar outras duas caixas de cerveja antes de sair. O mais velho olhou seu jornal ao chão, molhando com a cerveja, sangue e sorvete derramados, pegou outra cópia e jogou na sacola com sua arma, puxou ele mesmo outros dois maços de cigarro de dentro do expositor atrás do balcão, e sorriu uma última vez para o atendente, jogando os maços dentro da mesma sacola, agarrando-a e rapidamente se dirigindo pra fora.
Os três homens entraram em seu carro, um Impala 94 completamente preto e com as janelas escuras, o mais velho como motorista, o mais jovem no banco do carona, e o de meia-idade atrás. Permaneceram em silêncio por um momento, que logo foi interrompido por um raivoso soco do mais velho contra o painel do carro, seguido de um grito animado e uma risada histérica do de meia-idade, que abriu uma cerveja e bateu várias vezes com os pés no chão do carro. O mais jovem, começou a sorrir discretamente, virando-se para a janela e observando, ainda com a arma em sua mão. Por fim o mais velho exclamou um “puta merda!”, soltou uma breve risada, e ligou o carro voltando para a estrada.
Aos poucos riam cada vez mais enquanto se distanciavam do posto.
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