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paraconsertarotempo · 4 years
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#1 | Escrever uma carta com lágrima e goiabada
Mataram o Luquinhas, Vô. Imagina se te digo isso na metade de um dia qualquer, naquele tempo em que o senhor chegava em casa com a agenda de capa preta debaixo do braço e eu te oferecia água gelada em um copo de alumínio? O senhor dava um jeito de dizer que tinha ido resolver alguma coisa pelo Centro, estava por ali e resolveu passar, mas eu sabia que tinham sido pelo menos dois ônibus e o Terminal da Parangaba antes do abraço suado. Mão na careca para ajeitar os fios restantes, o indicador para subir o óculos que escorregava. Gestos lentos. Não queria almoço, mas sempre aceitava um pedaço de goiabada e outra rodada de água, que eu também bebia como quem vira uma cerveja. Há 11 anos deixamos de ter goiabada na geladeira. Hoje, sentada em frente ao mar, me serviram um Romeu e Julieta.
Comecei esta carta que podia ser para qualquer pessoa e foi justamente para o senhor. Pelo doce, mas principalmente pelo Luquinhas, interrompido no dia nove de março deste 2018. Dois tiros na cabeça. Quando o senhor infartou e passou uma semana em coma antes de ser enterrado no Jardim Metropolitano, inaugurando um buraco e me apresentando à morte de um amor, não de um conhecido, o Luquinhas tinha 15 anos. Não lembro a cara que ele fez quando te viu deitado no caixão, com o tom ensebado que as pessoas ganham quando perdem tudo. Não sei a cara que o senhor faria agora ao vê-lo ali, deitado, apertado em um caixão que não cabe o que a gente é e ainda assim entopem de flores.
Estou em um curso de escrita literária, Vô. Esta carta é uma tarefa de casa. Eu, que ando tão vazia de palavras, tenho de usar até duas mil para dar respostas. Por que quero escrever um livro? Para sobreviver ou ter esperança, que pode vir a ser a mesma coisa. Qual foi o gênero literário escolhido? Penso na crônica porque já é um caminho, talvez um romance porque é abismo. Onde e em quanto tempo acontece a história? Acontece agora, acontece o tempo todo e a escritora tenta agarrá-la da mesma forma que agarrava a areia molhada para construir castelos. Em vão.
E se, depois de se aproximar da morte por tantos caminhos, a personagem que ainda inventarei fosse obrigada a seguir viva? E se, depois de uma dor imensa só lhe restasse seguir adiante? É tudo ainda meio bobo e turvo. Tenho investigado a história que quero contar a partir do mote de uma crônica que escrevi há um ano. Compartilho um trecho, Vô:
Há 70 milhões de anos, duas placas tectônicas se chocaram e formaram a cordilheira do Himalaia, uma das mais jovens cadeias de montanhas, localizada na Ásia. De acordo com um provérbio hindu, assim como o orvalho seca com a luz da manhã, também somem as preocupações do homem ao ver o Himalaia. Eu nunca vi, mas a informação de que o relevo continua crescendo um centímetro a cada ano, em média, foi a poesia que quase salvou meus dias.
O Monte Everest, que é parte do Himalaia e também o ponto mais alto do mundo, já ultrapassa os 8 mil metros de altura. Imaginem o tamanho do impacto para que ele começasse a existir. Se por um lado há um processo constante de erosão que busca apequenar as montanhas, por outro um movimento segue tensionando as duas placas (podemos entender como corpos, ideias, vidas). O choque inicial começou quando não havia um ser humano sobre a Terra e ainda gera uma força incrível. A matemática final implica sempre em crescimento, apesar da gravidade, dos ventos, do tempo, de tudo.
Proporcionalmente, o Himalaia cresce como crescem as unhas. A Terra tem, aproximadamente, 4,54 bilhões de anos. Fiz 30 há dois meses. Outro ano começou. Uma hora dessas já rascunharam infinitas listas ou optaram por não fazer nenhuma resolução. Há os que acreditam que é só mais um e quem arrisque apostar que será o melhor da vida. Entre a ciência e o imponderável, a única certeza que tenho é que o Himalaia se fará maior, mesmo que eu não veja, mesmo que ninguém comente. Todo o resto é mistério.
O título do livro que não existe (ainda) seria O Himalaia cresce a cada ano. Imagino a narrativa escrita em primeira pessoa, mas ainda não sei quem é a dona da voz. Não sei se acontece em Fortaleza ou em uma praia com falésias, onde é possível enxergar cada cicatriz na paisagem e o tempo pode ser medido em termos geológicos. Pensei em escrever sobre uma mulher que permanece durante vários dias acordada em frente ao mar. Depois de contar centenas de ondas, ela passa a ligar as estrelas e quase enlouquece. Quase? Há um mistério que apenas começo a adivinhar. Ainda preciso descobrir os personagens.
Perguntaram qual o medo que tenho diante do projeto, Vô. Nos últimos dois anos foram tantos os medos que imagino esse livro como um território de investigação do verso da canção do Ednardo que tenho ouvido todos os dias às seis. "Leve é aquilo que brota muito além do medo".
O senhor já não estava por aqui quando minha mãe, a tua menina, descobriu uma doença autoimune. Depois de atravessar uma depressão e uma vontade de não viver (que é diferente de querer morrer), o corpo dela passou a se magoar de um jeito estranho. Teve quimioterapia e muito medo. Não me matriculei no doutorado em que fui aprovada do outro lado do Atlântico. Fiquei porque era essa a escolha e o caminho. Depois foi a vez de o medo se instalar no meu corpo: tive uma metástase de um câncer que o senhor não conheceu. Medo, medo, medo. Pulei uma fogueira. E agora, depois de eu descobrir o "namastê" e abrir o peito, mataram o Luquinhas, o teu neto, o filho do tio Dadá, que hoje ajeita os óculos de um jeito que te enxergo.
A história que quero contar nesse livro não é sobre nada disso, mas é como se fosse. O principal conflito dessa história é permanecer vivo quando tudo ao redor é morte. Ainda não sei qual é a maior alegria. A coragem que arrisco – o avesso do medo que é o próprio medo – é um gesto na contramão da paralisia. Preciso concluir este projeto para inventar uma rota de atravessamento.
Queria escrever uma história na qual o Luquinhas não morre. O real arde no meio do peito e só queria ser capaz de contar uma história que aliviasse a dor do Dadá, da Márcia, do Marone, do Pacelli, da minha mãe, da Bella, dos filhos dele. Uma história colorida como o Luquinhas, que tinha os olhos iguais às bolas de gude que eu achava mais bonitas. Transparentes, azuis e verdes. Eu não sei onde essa história mora.
O primeiro exemplar seria teu, mas os mortos não recebem livros, Vô Luís.
Só cartas.
Com amor, Iana
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paraconsertarotempo · 4 years
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#2 | Seguir em frente
Estratégias para seguir em frente: encher as garrafas da geladeira, espantar o morcego que entrou de repente, gritar porque senti medo, fechar a janela porque foi embora. Terminar de ler Norwegian Wood no Mc Donalds, chorar um pouco, tomar um porre de batata frita e sorvete de caramelo, dormir cedo porque é o jeito. Beijar mãe e irmãs. Celebrar a vida da Teresa que nasce da Deby e do Deivy, abraçar os amigos em um domingo. Ver Getúlio Abelha, a Mulher Barbada, o Silvero, que é a Gisele e todas elas, uau que força, que força! Entender que seguimos vivos. Não entender e seguir mesmo assim. Dançar um pot-pourri de Jorge Ben e Alceu, suar bem muito. Escrever uma besteirinha como esta na madrugada. Acreditar que o mundo ainda se salva e a gente idem, porque é o jeito. Dar enter no bloco de notas do celular quando toca aquele frevo naquele cai ou não cai e todo mundo se mistura e é bonito. Embora não pareça, eu tenho esperança, prometo. Bom dia, se já for de manhã.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#3 | Construir um barco
Saio do trabalho neste dia dos trabalhadores. Peço um Uber. Renar me pergunta se é possível comprar uns cinco quilogramas de jornal: quer fazer um barco. De papel de jornal? Não, o jornal é para forrar a fibra de vidro, me explica. Um caiaque para pescar. Pergunto se ele trabalha com isso, também. Não, viu um vídeo no Youtube. Vai ser bom pra tirar o estresse, me diz.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#4 | Observar o milagre na asa do cisne
Há uma energia cósmica que às vezes produz uma completa descrença na palavra. Escuto e não acredito. Leio e não faz sentido. Digo e parece que, antes mesmo da reverberação e da transformação do signo em som ou letra, tudo se desmancha. Há dias em que a palavra é frágil.
 Tentei convencer uma grande amiga de que há tempo para ela ser feliz em outros caminhos nesta vida. Sei da coragem e das reinvenções, mas acompanho também a falta de um ponto final em algo que já não se sustenta e lhe adoece o corpo. Não podemos escolher pelo outro, está na cartilha da vida adulta. Não habitamos nem o corpo nem os sonhos e muito menos os desejos do outro, mas há uma teimosia diante daqueles que amamos. Usei argumentos antigos e arrisquei alguns novos, mas me desesperei diante da minha incapacidade de convencimento. Não sei se faltou a palavra certa, aquela que fosse ponte para a transformação, uma que anda perdida e não consigo agarrar. Ou pior: talvez essa palavra não exista. Ando entalada.
Comecei a ler Só garotos, da Patti Smith. Logo nas primeiras páginas, a artista descreve a primeira vez que viu um “milagre singular”, que a mãe nomeou de “cisne”. “A palavra por si mal dava conta de sua magnificência, nem continha a emoção que ele produzia. Sua visão gerou uma necessidade para a qual eu não tinha palavras (...) Fiz força para encontrar palavras que descrevessem minha própria ideia sobre ele. "Cisne", repeti, não totalmente satisfeita, e senti uma pontada, uma saudade curiosa, imperceptível aos passantes, à minha mãe, às árvores ou às nuvens", escreve.
 Agarrei-me à melancolia suave da Patti como quem encontra um mapa. Tenho tentado fazer as pazes com a palavra e compreender que ser impotente também é parte da viagem. Tudo bem. Encontrar as palavras, inventá-las, subvertê-las, abraçá-las e também deixá-las partir pode ser um jogo bonito, não só doloroso. Quero que minha amiga enxergue o cisne, mesmo que ainda não saiba nomeá-lo. Estarei aqui, sempre. As palavras também descansam no silêncio.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#5 | Ver o futuro de peito aberto
Um garoto vestido de amarelo, sobre uma bicicleta, desceu a ladeira da Avenida Almirante Tamandaré com os braços abertos. Eu vi. Quando desço, ainda aperto o freio até a metade. Hoje enxerguei o futuro. A sutil magia da imagem: a antecipação no instante que escapa. Uma crença. O peito aberto.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#6 | Colecionar as imagens de um amor
As coisas que sei nomear ao adivinhar a subida do viaduto da Avenida Pontes Vieira me ajudam a desenhar o mapa da cidade onde guardo as fraquezas e as coragens que coleciono há 32 anos, com intervalos. Lá de cima enxergo, do lado esquerdo, o hospital no qual nasceu a primeira irmã que tive. Apressada, chegou aos seis meses e, hoje, 25 anos depois, ainda me faz lembrar que a vida é um imperativo por aqui. Se parar no alto durante um engarrafamento, olho para a BR-116 e para todo o Brasil que vem depois. Se descer de madrugada, sinto o arrepio da paisagem que desliza sobre a pele.
Lá embaixo, o rio Aguanambi, antes de ser avenida e asfalto, parece morto sob a invenção de um canal que não é caminho. Quando chove, há uma vingança ao contrário. Foi assim em 1997, quando tive de faltar um ou dois dias as aulas da sexta série. Tudo havia virado mar e não entendíamos de navegações. Evito olhar para a tampa de concreto que esconde a falta de apreço pelas águas.
Sobre a bicicleta, vejo a Aguanambi virar Dom Manuel diariamente. É também do lado esquerdo, em uma varanda azulada, que três girassóis dançam enquanto o sinal está fechado. Desconheço as mãos que plantaram essas flores que sempre moraram dentro da minha casa em uma cópia barata de Van Gogh. Nos raros dias em que atravesso o verde sem pausas, perco o gesto de quem enfeita a cidade. A sorte é que ele já existe nos meus olhos.
Assim como existe a igrejinha dos navegantes onde me batizei; a zoada do trem no Jacarecanga misturada à risada do padrinho Raimundo; a Mister Hull e o caminho até a primeira comunhão no Antônio Bezerra, bairro onde a avó Neuma morava e era catequistao; o banho na Praia dos Crush, o caranguejo na Praia do Futuro, as bolhas de sabão que fiz sobre as pedras da Praia de Iracema; o ônibus Parque São José, que parava entre a casa da bisavó centenária e do avô que morreu antes do tempo; os centros de humanidades, os centros e os labirintos da cidade; o gosto de guaraná, de gengibre, de pastel de frango; o menino que desce a ladeira da Almirante Tamandaré com os braços escancarados... Tudo existe nos meus olhos.
Em Fortaleza, eu vi crescer o amor como cresce um baobá na rua e no poema. Antes de ir embora outra vez – quem sabe – descanso na sombra da poesia que mora na esquina. Esta e todas as outras imagens da minha pequena coleção me fazem amar esta cidade. Até quando quase parece que não. Eu amo.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#7 | Levar o tempo para o conserto Dadá pediu que eu conseguisse uma bateria nova para o relógio do Luquinhas. Os ponteiros precisam voltar a girar. Grande e dourado, foi comprado em uma viagem a São Paulo, talvez a primeira. Tenho carregado o relógio na bolsa. Não consigo distinguir se é verdadeiro ou falso. Pesa. Ainda não fui ao Centro. Se fechar os olhos, sei exatamente onde fica o senhor que conserta o tempo da minha família. Há duas eternidades, está sentado no Café Azteca, na Liberato Barroso, uma rua feita para as pessoas. Apoia os braços sobre uma vitrine de vidro e, dali, observa o arrastado dos pés. Entende que há mais gente do que segundos sobre a Terra, embora pareça o avesso. Não sei quando foi a última vez em que vi o Lucas. Consigo lembrar dos azulejos da rua, da minha cabeça desenhando um tetris e encaixando cada peça em um jogo sem fim. Sei dos bonecos do homem aranha, das princesas, das calcinhas, das cuecas, das capinhas para celular, das pitombas, dos cajás e das outras frutas que variam o ano inteiro. Seriguela, uva, morango.  Banana sempre tem. Lembro-me de ter de segurar o vestido porque o vento faz a curva bem ali, na esquina com a Floriano Peixoto. Posso sentir o cheiro do pastel com azeitona. Penso se subirei na balança que marca o peso não das horas, mas do corpo. Adivinho a moça que vende castanha inteira, quebrada e moída. Amendoim do mesmo jeito. Imagino que dará tempo ir um tanto mais à frente e comprar duas canetas esferográficas baratinhas, de ponta nem fina nem grossa. Sei de tudo isso, mas não recordo a data do último abraço. Quando ouvi, por telefone, que o Luquinhas estava morto, gritei um grito que não conhecia. Nem os vizinhos entenderam e, por isso, bateram na porta e me viram entre a sala e o quarto. Mãos na cabeça. Dois tiros antes das sete da manhã do dia nove de março. Eu já estava banhada, mas ainda não tinha penteado o cabelo. Olhei pela varanda, mas não enxerguei nada. Um dos tiros foi no pescoço. Minha mãe ouviu de um funcionário do Instituto Médico Legal, quando foi liberar o corpo no começo da noite de nove de março, que quem atirou queria matar. Registraram como latrocínio. O Luquinhas tinha os olhos azuis, falava baixo, gostava de estudar. Construiu um robô quando era menino. O robô o levou para o Chile. Vi as fotos. Usava um casaco emprestado pelo meu pai. Azul marinho com gola vermelha. Arranjei um medo da palavra escrita, tão definitiva de um jeito que não sei se o que me assusta é a morte ou a vida que ainda avança mesmo no fragmento. Aperto o relógio na palma da mão esquerda. Não alcanço a forma de narrar essa dor. Nem pela imaginação, nem pela investigação diária da tragédia. Parei de escrever. Minha tia Márcia veste preto e reza uma reza que não sei o nome, várias vezes ao dia. Perdeu seu menino. Dadá, o tio que tem nome de garoto, coloca um brega bem alto no carro em que faz frete e chora enquanto esfrega a palma da mão na coxa. A bermuda esgarçada sabe mais da dor do que quem passa na rua e dá os pêsames de um jeito ensaiado. Come panelada, feijoada, cuscuz, pão com mussarela. Assa linguiça, torra bolacha quadradinha, compra Fanta laranja. Faz tudo isso e chora. Tento imaginar o Lucas vivo antes dos dois tiros, quando beijou os dois filhos, a esposa e saiu de casa, banhado. Relógio no pulso. Não consigo. O Luquinhas não volta, nem o tempo, ainda que eu tente consertá-lo.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#8 | Chorar com nove entre dez estrelas de cinema
Lembro-me de quando me disse que, para dançar bem, era urgente aprender a mexer as pernas. Dessa consciência viriam todos os outros movimentos necessários: um contágio, uma energia que escalaria todo o corpo. Primeiramente, era preciso entender a existência do par de pernas. Acompanhava o anúncio da descoberta com um rebolado estranho e bonito. Ainda o vejo deslizar na sala de azulejos vermelhos.
Gostava de observá-lo quando recebia um tanto da luz que chegava logo acima do Trópico de Câncer. Dourado, comprido, magro e de rosto anguloso, maxilar marcado, sentava com uma xícara de café e um cigarro na varandinha do meu quarto, que já tinha sido dele. Perguntava se podia entrar quando já estava dentro e eu ria com o menino de caninos curtos mas afiados.
Na primeira vez que vi Xavi, enxergava, ao mesmo tempo, a Sagrada Família, a Torre Acbar, a montanha do Parc Guell e o mar. Quando retornou de Dubai, era outono. Fazia sol e subimos no terraço do prédio onde dividimos apartamento, tempo, sorriso, torta asturiana, calçots, sonhos, jogos do Barça e macarronadas improvisadas. Eu, que ainda não sabia o rumo da vida e desta história, fiz três retratos no primeiro encontro. Um, das pernas de Xavi com a Estrella Damm ao lado. Outro com a irmã encostada no ombro. O terceiro, sozinho: sorriso imenso.
Saiu da casa dos pais aos dezesseis anos. Sobreviveu. Naquele abril de 2015, quando saímos para comprar roupas em brechós, esperava o visto para passar alguns meses na China, onde seria modelo outra vez. Disse que ficava em paz quando estávamos juntos. Apresentou-me um sanduíche tradicional e, na lanchonete miúda da Praça Sant Jaume, fiz o último retrato. Embora posasse, não queria ser quem não era. Abri a foto agora. Ele me olha. Está curvado, agarra as mãos. São dois: o que me encara e o do espelho.
Queria ser técnico de futebol de crianças, mas precisava de dinheiro – e falaram da China. Ele não queria ir. Alguma coisa aconteceu naquela cabeça de vinte e poucos anos. Quando voltei a Barcelona depois de alguns dias em Sevilha, Xavi já não conseguia olhar nos olhos. Andava muito rápido e não sorria, sentia as dores da crise econômica e todas as dores que eu não sei nomear. Queria consertar o mundo. Fazia anotações. Inventava mapas.
Xavi se jogou do sexto andar do prédio dos pais. Caiu em cima da telha de amianto do estacionamento de um supermercado. Não morreu. Passou dois dias e algumas horas em cima de uma cama.
Nine out of ten. A música tocou agora no modo aleatório do aplicativo, enquanto arrumo a sala. A luz no Bairro de Fátima caminha apressada porque agora estou perto da Linha do Equador. I’m alive, vivo, muito vivo. Apresentei esta canção no inverno. Talvez já fosse janeiro quando aprendeu a cantá-la porque já conhecia Londres e, entre as dezenas de canções do exílio que espalhei pela casa, essa chegou nele de um jeito especial. Conseguia achá-la no Youtube e, mais de uma vez, dançamos na sala. 
Não consegui ver as pernas de Xavi uma última vez. Entupiram o caixão de flores.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#9 | Sangrar uma vez mais
Tenho dificuldade de lembrar dos tempos inaugurais. Da primeira vez. Ao perceber o rastro de uma dor antiga que escorre entre as pernas, encosto em um medo que é a estreia de algo já conhecido, embora não lembre. Entenda: adivinho a singularidade de um acontecimento. Guardo um instante como se pudesse tê-lo entre os dedos, dentro de uma caixinha. Depois perco a chave.
 Explico ou quase. Quando soube que meu útero estava dez vezes aumentado, sem filho, sem futuro, só miomas, senti alguma coisa que já não alcanço descrever. Andei pela Avenida Rui Barbosa com a informação de que o útero tem o tamanho de um punho – fizeram até poesia com isso –, mas o meu era dez vezes maior. Vi a imagem. Dez punhos, quis pensar.
 Todos os médicos repetiram que eu poderia ter filhos mesmo com o útero fabricando dezenas de tumores. Repetiram a informação antes mesmo de perguntar se eu queria ter filhos. No entanto, na véspera da retirada dos miomas, o cirurgião alertou para o risco de uma histerectomia. Palavra imensa. Ia fazer o possível para que isso não ocorresse. Não sei se quero filhos. Não sei se passaria a querê-los pela impossibilidade de tê-los.
 Aprendi a comemorar a palavra benigno depois que conheci, no corpo, a palavra maligno. Um equilíbrio esquisito entre a aceitação e a esperança. A bondade de uma palavra não retira a sua possibilidade de destruição. Levei mais de 30 pontos. Carrego uma costura vertical que posso inventar ser um caminho, um mapa, uma fronteira, uma linha do tempo. Ainda é uma cicatriz.
 A memória como imagem. Perto dos olhos. Na ponta dos dedos.
 Agora são apenas quatro punhos e devo comemorar.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#10 | Cair duas vezes
Nunca havia caído da bicicleta até a última segunda-feira, quando levei duas quedas no mesmo dia. Uma amiga achou pouco as feridas, o roxo, o sangue: perguntou se eu acreditava que o universo queria me dizer alguma coisa com aquilo. Respondi que duas quedas já eram muita coisa para ainda precisar ser uma metáfora, um sinal, uma lição.
 A primeira foi ridícula. Fui fazer uma curva logo depois de descer a ladeira da Avenida Almirante Tamandaré. Uma curva miúda, a mesma de todos os dias, às oito e vinte e cinco da manhã. Suave. Havia muita areia espalhada. O pneu deslizou e, naqueles segundos antes do chão, não pensei em nada porque não esperava. Caí e, estatelada, levantei apenas os olhos para ver se alguém tinha me visto. Um vendedor de salgados esbravejou contra a montanha e me estendeu as mãos. Quis chorar, mas não quis que ninguém se assustasse.
Lembrei quando caí em agosto de 2008, ao receber um envelope com as palavras "sugestivo de carcinoma papilífero". Ri e perguntei para a atendente se carcinoma tinha mesmo alguma coisa a ver com câncer. Eu já tinha a certeza, só queria que a certeza de dentro pudesse ser desfeita por alguma informação oculta. Quis chorar, mas não quis que ninguém se assustasse.
Os médicos me operaram no dia 15 de setembro. Quatro nódulos, uma contaminação do nervo recorrente, uma raspagem na traqueia, uma cicatriz no meio do pescoço. Depois veio a radioiodoterapia, o isolamento no quarto do hospital, a reposição hormonal, a rouquidão. Ter de lidar com a palavra câncer. Sempre a palavra.
Em janeiro de 2009, outra cirurgia. Uma metástase – outra palavra – na região do pescoço. Coisa simples, com exceção da Síndrome de Horner. Pálpebra baixa. A cicatriz fez uma curva imensa. Considerei tudo uma queda só.
A segunda queda da última segunda-feira foi no cruzamento que parece Calcutá com seus carros e vacas que não entendem de direção e vêm de todos os lados. Ali, na Padre Valdevino com a Aguanambi, no trecho que vira a Dom Manuel, o cadarço do tênis direito enrolou no pedal. Tive alguns segundos para entender que precisava cair para me salvar. Alcancei uma calçada e não morri.
A maior queda que já tive, no entanto, foi na véspera de completar uma década da primeira descoberta. Na imagem apareceu algo sugestivo, outra vez. Na agulha, a certeza. Estava sozinha diante do papel. Quis chorar e chorei. Muito. Caminhei do final da Avenida Pontes Vieira até a Praça da Imprensa, na Avenida Desembargador Moreira. Sentei em um banco e chorei. Quando algo grande atravessa a vida, ainda que pareça a mesma coisa, tudo vira esquecimento. Só sabia chorar.
Fui operada antes do carnaval de 2017. Não lembro o dia. Quando acordei no centro cirúrgico, entupido de luz, tocava We are the champions e tive muita vontade de falar qualquer coisa, embora não conseguisse. Essa música é boa de ouvir e gritar junto, my friend. Achei bonito.
Já quis conversar com o universo. Agora, aqui, escrevo sem diagnósticos, sem moral da história. Observo as feridas que começam a descascar e fazem cócegas. A cicatriz do pescoço ficou maior. Voltei a andar de bicicleta na terça-feira.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#11 | Ver o mar
Da última vez que te levei para ver o mar, as ondas estavam quietas. Chegamos antes da hora marcada e o mar estava lá, ainda que não estivéssemos preparadas. Eu te mostrei aquele mar inesperado e te pedi para chegar perto. Vi quando tu encostaste o rosto e passaste a mão no mar. Quase esquecemos a razão de estarmos ali. Eu te fotografei.
Nunca disse, mas tenho saudades de te ver na beira da praia. Não digo porque sei que tu também tens saudades e nomeá-la não nos devolve o gosto de sal. Dizer agora, em silêncio, é uma estratégia para fazer o tempo navegar ao avesso. Vejo-te outra vez na Praia de Boa Viagem. Bem pretinha e magrinha, com aquele sorriso mais extenso do que a espuma na linha do mar. Branco e brilhoso. Um sorriso que ia e vinha de um jeito fácil, porque era natural se esparramar inteira na década de 80. 
Tu raramente entravas na água. Ficavas deitada na cadeira com os braços abertos e as pernas estiradas. Parecias uma estrela. O mar te observava e eu, também. Sei como és bonita quando o mar te olha. De longe, eu levantava o braço e balançava bem rápido, muitas vezes, depois virava as costas para pular mais uma onda. Eu gostava de saber que tu me olhavas.
Fico pensando se teu corpo sabia que um dia não poderias te deitar ao sol e, com essa premonição sorrateira, aproveitar todos os dias com a alegria de quem se afasta sem perceber que é a última vez. Crescemos em muitas praias. Canoa Quebrada, Majorlândia, Quixaba, Icaraí, Pecém, Sabiaguaba, Icapuí e aquela onde passamos a vida: a Praia do Futuro. Não nos despedimos de nenhuma delas.
Como poderíamos adivinhar que algo que te fez tanto bem um dia te faria mal?
Essa pergunta é imensa, mãe. Desculpa.
Não sei quem teve a ideia de colocar aquele adesivo imenso na entrada do hospital. Não lembro o número de sessões, o dia em que a quimioterapia terminou, a cara que tu fizeste quando soubeste que precisaria de outro ciclo, a explicação exata dessa doença de nome comprido em que o corpo não entende de si e inventa uma guerra. Lúpus Eritematoso Sistêmico. Uma sentença. Lembro-me da foto que fiz no dia 23 de fevereiro de 2016. Guardei com a legenda "meu mar e minha mãe". Hoje esta carta é triste e está tudo bem. Lágrima tem gosto de mar.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#12 | Enxergar um grão de areia
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Quando vi que o relógio da calçada marcava 18:11, pensei em você. O cérebro é engraçado, pai. Era apenas um horário qualquer, mas eram os números do seu aniversário e, em todas as pedaladas seguintes, até as 18:26, eu pensei em você. O tempo das nossas vidas poderia ser geológico. Nesses 15 minutos, ergui três montanhas para vê-las desaparecer com uma tsunami. Aprendi com você. Começamos a contar a vida há milhões de anos, a partir da existência de um grão de areia, nosso conto de fadas e Big Bang particular. Você me disse que ele morava no alto da Serra de Maranguape e, um dia, pela ação dos ventos e das correntezas, faria um caminho comprido. Vítima da erosão, traçaria sua jornada do herói. Desbravaria florestas e sertões, até um dia morar no alto de um arranha-céu, onde viveria décadas antes de cumprir outros destinos e descansar no mar. Não seria o fim.
Para ser ele mesmo, o grão de areia precisava ser muitos. Uma montanha, uma duna, um rio, um campo de futebol, um prédio, um carro, um jardim, uma faca, um relógio, uma fotografia, uma cordilheira, uma lágrima. Ele deixava de ser uma coisa para existir de outro jeito.
Tínhamos outras odisseias além dessa. Há 29 mil anos, por exemplo, subi nas suas costas, ali no raso, e agarrei forte todas as vezes que você gritou “olha o batomuche” e mergulhou. Você repetia o batomuche e eu achava graça. Só muito depois, descobri que o “batomuche” era o Bateau Mouche, um barco que naufragou quando eu nem sabia contar até dez. Quando, aos 20, quase me afoguei no mar da Taíba, você me explicou, com um desenho, a razão geomorfológica que gerou aquilo que quase me mata. Eu só pensava que já não tinha um barco para me agarrar.
Às 18:26, desci da bicicleta como quem desce a Cordilheira dos Andes. Lembrei que há oito anos você movimentou uma placa tectônica e provocou um abalo sísmico. Eu, com os pés divididos entre duas fendas, vi muita lava espirrar. Procurei em várias camadas de mim o que seria necessário para tudo esfriar e virar rocha magmática. Um dia tanta dor será só granito e basalto?
Agora estou no alto de um monólito. Há 32 anos sobre a Terra, me assusto com a rapidez de uma volta ao redor do Sol e com a brevidade de uma narrativa. Cresci e é difícil enxergar o grão de areia, pai. Escrever foi uma estratégia que inventei para procurá-lo e carregá-lo, outra vez, entre os dedos.
Você também me contou que os monólitos são feitos de estrelas e as estrelas nos fazem. Espanto e beleza. Da última vez que subi nas falésias de Icapuí e observei as Três Marias, tive saudades de saber medir o tempo na largura do para sempre.
(o grão de areia desta página é um quartzo rosa. Quando você terminar de ler, ele já poderá ser outra coisa)
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paraconsertarotempo · 4 years
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#13 | Fazer 30
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Ganhei vinte e cinco quilos em oito anos, quatro cicatrizes, uma pálpebra mais baixa. Perdi quatro cisos e outro dente que não sei o nome, o movimento de uma corda vocal, alguns cabelos. Morei em quatro cidades, tive três namorados, dois amores, um câncer, duas metástases, alguns miomas. Nunca tive cava no pé. Quis ser bióloga, psicóloga, virei cientista social (quase antropóloga, depois larguei), jornalista, fotógrafa, artista. Detesto rúcula, beterraba e fio dental. Adoro atum, esmalte azul, óculos de grau, cheiro no cangote, pegar no lóbulo da orelha de alguém, dormir com o lençol do lado do rosto.
Nasci na reabertura, subi na cacunda do meu pai quando cantavam a música do Lula lá, brilha uma estrela. Caí em cima de um copo e ganhei uma cicatriz na barriga, tive um princípio de necrose no tornozelo no mesmo ano em que celebrei aniversário com o tema da Hello Kitty (ou da Moranguinho). Morei no mesmo prédio de Luiz Gonzaga, que achava minha mãe uma bela morena. Encontrei o mesmo prédio anos depois, apostando em algum tipo de inscrição visual na memória. Tive um padrinho mais velho e hoje é tudo tão distante, mas ainda lembro do cheiro das vacas e do mato em Mombaça. Voltei para enterrar a bisavó centenária.
Entendi que era gente do outro lado do Atlântico, mas também nas margens do Maranguapinho, em um dia que choveu muito, a água encostava na cintura e fomos descobrir as histórias de quem arriscava a vida ali. Pesquisei o que era ser índio no meio de um conflito com um empreendimento turístico, mas nunca consegui subir a duna tão rápido como aquela senhora com mais de oitenta e vestido azul. Não peguei chikungunya, nem publiquei um livro. Fiz planos e desfiz.
Completei trinta anos. Entrei em crise. Uma angústia grande com a irreversibilidade das coisas. Mas aí vi as fotos do telescópio Hubble, em órbita desde 1990, e lembrei do Carl Sagan: somos apenas poeira de estrelas.
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paraconsertarotempo · 4 years
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#14 Fazer 32
Aprendi a ficar de ponta-cabeça e chamei isso de milagre. Comprei uma bicicleta, passei um ano sem comer farinha de trigo e dois anos sem beber coca-cola. Estou viciada em fio dental. Ainda detesto rúcula e beterraba. Adoro beber água gelada em copo com gelo, encostar a ponta do nariz na orelha do meu amor, unir os sinais que tem nos braços e desenhar uma constelação com os dedos. Coleciono mapas e pedras.
Nasci uma vez de parto e outras três porque quis. Tenho seis tatuagens. Quatro são imagens: uma faca, um copo de mar, o Himalaia, um ramo de arruda. As outras, palavras: o sul, a sorte, a estrada; vamos; atenta e forte. Já fiz planos para a próxima: a cabeça de uma menina serena - alguns avaliam que está triste, eu sei que não está - com pássaros que voam no pescoço.
Inventei um território e trinta e duas cidades. Já tropecei em uma nuvem quando reparei, sem pressa, no rosto de alguém. Saí do primeiro emprego depois de uma década. Foram nove anos e alguns meses, mas dizer uma década aos 32 tem mais impacto para quem escuta. Não sinto falta, embora tenha saudades.
Quis que meus pais cantassem “Não me arrependo”, do Caetano. Nunca disse isso para eles. Adotei dois gatos. Alcancei duas graças e fiz outra promessa. Tomei banho de mar na Praia de Iracema e jurei fazer isso mais vezes. Não cumpri.
Gritei #ficaquerida, #foratemer, #elenão, #lulalivre, #quemmatoumarielle. Vi o fascismo morar no corpo de familiares. Tenho dias de cansaço, dias de desespero e dias de seguir em frente. Bebo menos água do que preciso. Descobri que ninguém pode se colocar no lugar do outro. Essa é só uma frase bonita e as frases bonitas são perigosas. Às quartas, deito em um divã. Sei que tudo pode ser pior. Disseram-me que pode ser simples e tento aprender. Nunca li nada de Lacan. É urgente estar perto do outro.
Só publicarei um livro quando souber transformar a palavra em gesto. 
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paraconsertarotempo · 4 years
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#15 Fazer listas para não morrer
Ainda preciso escrever sobre:
A avó que torrava biscoitos quadradinhos com manteiga. A mesma que cozinhava feijão de corda com macarrão e hoje mora em uma casa de paredes laranjas onde nunca amanhece, diferente da casa da Adélia. A avó que viu o Luiz morrer, o Lucas morrer, mas não viu a filha ir embora.
A avó que usava calça jeans quando todas as avós usavam saias. A dona de uma biblioteca infinita diante dos meus olhos miúdos. A viúva antes dos 50, a mãe de cinco, a agrônoma, a atriz de teatro, a frequentadora de serestas. A avó dos livros de capa vermelha e letras douradas. A avó colecionadora dos meus pedaços em jornais.
A menina dos meus sonhos que aparece sentada em uma cadeira de rodas no meio de um pátio sombreado, com azulejos coloridos no chão cheio de folhas. O aquário iluminado por uma luz dourada. Eu vendo tudo de cima, muitas vezes.
As cobras do sonho da última noite. O espelho d’água imenso. Eu ter medo de cair em cima das cobras e cair mesmo assim. Nunca ter sonhado com cobras até essa noite.
O avô que não me deixou lembranças, só um Castelo, antes de fechar os olhos sem me conhecer. O Antônio infartado depois de um churrasco. O apoiador de Paes de Andrade, que transformou Mombaça em Brasília por um dia.
As saudades de Barcelona, do pão quentinho, de lavar o rosto nas ruas, de andar sem pressa e sem rumo, de ter futuro e tempo. As saudades de Mombaça, de subir em cavalo e jumento, de pescar peixe miúdo em açude de água escura, dos sapos anfitriões, das portas barulhentas, do horizonte. As saudades de Recife, da praia de Boa Viagem, das ladeiras de Olinda, de picolé de morango, da família que parecia ser para sempre e ainda é.
A irmã que se pendura no mundo e faz o medo dar voltas. A irmã que sabe voar.
A irmã que eu chamo de bebê porque ainda enxergo o mesmo sorriso de quando fazia cócegas debaixo do queixo dela. A irmã imensa.
A orelha do meu amor. O jeito de revirar os olhos do meu amor, de passar o fio dental, de morder o canto das unhas, de abotoar as camisas, de me agarrar pela cintura. Os poemas do meu amor. O meu amor lendo no sofá. O abraço que me dá na madrugada. O relevo esculpido nos lençois. A coragem do meu amor.
O amor dos outros. O amor sem medo do mar, sem medo das ondas, sem medo de nada, só de não amar o amor. O amor e os clichês. O amor de um marinheiro, se é que ainda existe marinheiro. O amor do professor e da namorada do professor. O amor sentado na praça, no bar, na sala de aula, o amor sem tempo para sentar, o amor na estrada. O amor de quem achava que não sabia amar. O amor como descoberta do próprio amor.
A observação das mãos conhecidas. Os desenhos das mãos quando atravessam o ar e fazem música. Os dedos que empurram os cabelos por trás de uma orelha. A mão ao escrever. A suavidade dos gestos. A rapidez dos gestos. Os gestos.
Tudo que não escrevi por medo ou vergonha. 
A descoberta do significado de hordéolo, que é um terçol ou um tersol, como achava que se dizia e imaginava, sempre, um Sol dentro do olho. A estratégia inventada para não levar as coisas tão a sério. O fim de duas mágoas por meio da urdhva dhanurasana, a postura da ponte que ainda não alcanço no ioga.
A vida inteira.
As três definições da morte ensinadas pelo Mestre Júlio Santos. A morte é a maior dádiva. A morte é um transporte. A morte é uma mentira. 
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