Tumgik
poemafacaflecha · 3 years
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Poema só para poetas
poesia para quem conhece o peso da palavra. a dor dos dias sem palavras. das palavras sem silêncio. a alegria do silêncio cheio de palavras. da superfície sem palavras de dor ou silêncio. para quem já se recusou já se armou como um carrapicho já cedeu. a cara como um convexo poroso encharcado na chuva. para quem já fez carícias com indiferença com susto com indignação. não importa onde a fisgada nas vísceras lhe corte o verso. ou que o curso da prosa o esconda sob água turva.
Marcos Siscar
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poemafacaflecha · 3 years
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Aniversário
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco. O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho...) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Álvaro de Campos
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poemafacaflecha · 3 years
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Insônia
Saudades das Tuas noites fogueiras que eu não vivi Palmares, Estado Negro... (vivo pensando em ti) Como não estar Na podridão do Mangue nas ratazanas da zona na multidão de bucetas infectas como não estar no barulho da britadeira Na comida azeda na marmita fria como não estar na fome do meu filho Já nascido com jeito de morte como não estar no lixo das madames no cheiro da gordura da pia nas bostas dos barões boiando na latrina como não estar no trem lotado, no barraco caindo No camburão na porrada nos dentes no lodo do fundo de cada cela Como, se tudo isso sou eu? Quilombos, meus sonhos sofro de uma insônia eterna de viver vocês Vivo da certeza de renascê-los amanhã, Se um distinto senhor vier me dizer para não pensar nessas coisas vou ter de matá-lo com um certo prazer. Por menos que conte a história Não te esqueço meu povo Se Palmares não vive mais Faremos Palmares de novo.
José Carlos Limeira
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poemafacaflecha · 3 years
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NOMALI
“O filho que não fiz / hoje seria homem. Ele corre na brisa / sem carne e sem nome” Carlos Drummond de Andrade
Ela não vira. Sua presença ficará dependurada no céu                                     [das possibilidades. Como a música que leva o seu nome, ela será bela e fruirá de uma ausência encantada.
Enquanto ela não vier, flutuará no horizonte uma menina esguia. Seria aquele o seu nariz? Teria ela os meus quadris? Como explicar a ela: filha, todo amor é por um triz.
Sabemos que ela não virá e sua ausência preencherá as madrugadas. Levantaremos com os ouvidos exaustos da ausência do seu choro dos meus peitos brotará um leite de esquecimento e cada dia seu será repleto do silêncio deste nome.
Enquanto ela não vier seu não-ser devastará a terra e nada mais que se plante, se erguerá sem que a sombra desta dor marque as colinas.
Lívia Natália
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poemafacaflecha · 3 years
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VOCÊ NÃO VAI CELEBRAR COMIGO?
você não vai celebrar comigo isto que eu moldei como um tipo de vida? eu não tive nenhum modelo. nascida na babilônia não branca e mulher. o que eu imaginei ser além de mim mesma? eu forjei isso. aqui nesta ponte entre a luz da estrela e a argila, minha mão segurando firme minha outra mão; venha celebrar comigo, que todos os dias alguma coisa tenta me matar e falha.
Lucille Clifton
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poemafacaflecha · 3 years
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Na kal lingu ke n na skirbi
Na kal lingu ke n na skirbi Ña diklarasons di amor? Na kal lingu ke n na kanta Storias ke n kontado? Na kal lingu ke n na skirbi Pa n konta fasañas di mindjeris Ku omis di ña tchon? Kuma ke n na papia di no omis garandi Di no pasadas ku no kantigas? Pa n kontal na kriol? Na kriol ke n na kontal! Ma kal sinal ke n na disa Netus di no djorsoN? Ña rekadu n na disal tambi na n fodja N e lingu di djinti E lingu ke n ka ntind
Odete Semedo
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poemafacaflecha · 3 years
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EM QUE LÍNGUA ESCREVER
Em que língua escrever As declarações de amor? Em que língua cantar As histórias que ouvi contar?
Em que língua escrever Contando os feitos das mulheres E dos homens do meu chão? Como falar dos velhos Das passadas e cantigas? Falarei em crioulo? Mas que sinais deixar Aos netos deste século? Ou terei de falar Nesta língua lusa E eu sem arte nem musa Mas assim terei palavras para deixar Aos herdeiros do nosso século Em crioulo gritarei A minha mensagem Que de boca em boca Fará a sua viagem Deixarei o recado Num pergaminho Nesta língua lusa Que mal entendo Ou terei de falar Nesta língua lusa E eu sem arte nem musa Mas assim terei palavras para deixar Aos herdeiros do nosso século Em crioulo gritarei A minha mensagem Que de boca em boca Fará a sua viagem Deixarei o recado Num pergaminho Nesta língua lusa
Que mal entendo E ao longo dos séculos No caminho da vida Os netos e herdeiros Saberão quem fomos
Odete Semedo
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poemafacaflecha · 3 years
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eu durmo comigo
eu durmo comigo/ deitada de bruços eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado
Angélica Freitas
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poemafacaflecha · 3 years
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Palavrear
Minha mãe me deu ao mundo e, sem ter mais o que me dar,
me ensinou a jogar palavra no vento pra ela voar.
Dizia: “Filho, palavra tem que saber como usar.
Aquilo é que nem remédio: cura, mas pode matar.
Cuide de pedir licença, antes de palavrear,
ao dono da fala que é quem pode lhe abençoar
e transformar sua língua em flecha que chispa no ar
se o tempo for de guerra e você for guerrear
ou em pétala de rosas e o tempo for de amar.
Palavra é que nem veneno: mata, mas pode curar.
Dedique a ela o respeito que se deve dedicar
às forças da natureza (o animal, a planta, o ar),
mesmo sabendo que a dita foi feita pra se gastar,
que acaba uma, vem outra e voa no seu lugar.”
Ainda ontem, lá em casa, me sentei pra conversar
com as minhas duas meninas e desatei a lembrar
de casos que a minha mães e esmerava em contar
com luz de lua nos olhos enquanto fazia o jantar.
Não era bem pelo assunto que eu gostava de escutar
aquela voz que nasceu com o dom de se desdobrar
em vozes de outras eras que voltarão a pulsar
sempre que alguém, no vento, uma palavra jogar.
Gostava era de poder ver a voz dela criar
mundos inteiros sem quase nem parar pra respirar
e ganhar corpo e fazer minha cabeça rodar,
como roda ainda hoje, quando, pra me sustentar,
eu jogo palavra no vento e fico vendo ela voar
(jogo palavra no vento e fico vendo ela voar)
Ricardo Aleixo
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poemafacaflecha · 3 years
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currículo
meu nome eu mesma. meu endereço em mim. meu cadastro de pessoa física este corpo, que dentro é céu e é jardim. meu registro geral não foi registrado e desde meu nascimento, numa quarta-feira de cinzas, nutro certo encantamento, por tudo que não é numerado. meu telefone anda ocupado, uma família de pássaros fez um ninho bem no fio da minha linha desde então, ali só se aninha o canto de uma mãe que espera. pra falar comigo, só mesmo depois da primavera, quando do nascimento do novo passarinho. minha formação profissional segue um caminho amador. insisto no amor. minhas atividades atuais: pensar na vida e uma corrida sem fim à beira-mar... encontrar saídas e encontrar entradas, para essa vontade desmedida de viver, de amar. por fim, minhas referências pessoais, é melhor que eu não diga ou que você pergunte a ninguém... elas serão sempre mais. mais verdadeiro é que você descubra, na convivência comigo, meu tempero, minha loucura, minha ternura, meu desassossego. então? é meu, o emprego? 
karina rabinovitz
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poemafacaflecha · 3 years
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Ludismo
Quebrar o brinquedo é mais divertido. As peças são outros jogos: construiremos outro segredo. Os cacos são outros reais antes ocultos pela forma e o jogo estraçalhado se multiplica ao infinito e é mais real que a integridade: mais lúcido. Mundos frágeis adquiridos no despedaçamento de um só. E o saber do real múltiplo e o sabor dos reais possíveis e o livre jogo instituído contra a limitação das coisas contra a forma anterior do espelho. E a vertigem das novas formas multiplicando a consciência e a consciência que se cria em jogos múltiplos e lúcidos até gerar-se totalmente: no exercício do jogo esgotando os níveis do ser. Quebrar o brinquedo ainda é mais brincar.
Orides Fontela
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poemafacaflecha · 3 years
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Meu canto pras paredes
o preconceito é uma parede enorme contra a qual desde sempre me empurraram mas se tentaram e não me executaram é que aprendi bem cedo que não dorme
o apontado: preto bicha pobre no paredão cresceu e ficou forte ainda com  a dor que o véu da morte bem do seu lado alguns amigos cobre
e é por eles que não me vitimo nem quero mais derrubar a parede apenas canto para além de um íntimo
desejo: reforçar  rizoma e rede cheia de nós, que não estou só, sou vivo. picho a parede:  verso afirmativo.
Alex Simões
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poemafacaflecha · 3 years
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Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. ecoou lamentos de uma infância perdida.
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela
A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue        e        fome.
A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade.
Conceição Evaristo
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poemafacaflecha · 3 years
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para este país
para este país eu traria
os documentos que me tornam gente os documentos que comprovam: eu existo parece bobagem, mas aqui eu ainda não tenho certeza: existo.
para este país eu traria
meu diploma os livros que eu li minha caixa de fotografias meus aparelhos eletrônicos minhas melhores calcinhas
para este país eu traria meu corpo
para este país eu traria todas essas coisas & mais, mas
não me permitiriam malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar aquele navio poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país eu trouxe
a cor da minha pele meu cabelo crespo meu idioma           materno minhas comidas preferidas na memória da minha língua
para este país eu trouxe
meus orixás sobre a minha cabeça toda minha árvore genealógica antepassados, as raízes
para este país eu trouxe todas essas coisas & mais
: ninguém notou, mas minha bagagem pesa tanto.
Ele não me viu com a roupa da escola, mãe? Marcos Vinícius da Silva, 14 anos, assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro
E ainda que eu trouxesse
para este país
meus documentos meu diploma todos os livros que li meus aparelhos eletrônicos ou minhas melhores calcinhas
só veriam meu corpo
um corpo negro.
Lubi Prates
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poemafacaflecha · 4 years
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Imaginário
Pende entre minhas pernas pretas
um mito gorduroso,
quase impossível de carregar.
  E na sua plena atividade,
na diabólica plasticidade,
me arqueia o dorso,
me alquebra o corpo
até interditá-lo.
  E na sua robustez de mito,
me debilita a frágil saúde
ainda mais,
nas suas dimensões de mito,
me diminui a forma
ainda mais,
na sua centralidade de mito,
me reduz a toda solidão
do cais.
  Por isso, não morram
se eu resolver
extirpa-lo amanhã.
É que minhas pernas pretas
marcham melhor
sem o seu peso incômodo,
minha cabeça preta
se equilibra melhor
sem o seu peso incômodo,
todo meu corpo preto
se ergue maior
sem o seu peso incômodo.
Wesley Correia
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poemafacaflecha · 4 years
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Canção do Silêncio
Um carnaval me atravessa violento, meus ouvidos apenas digerem algo do que se ouviu, numa oficina lenta de mastigar palavras. Minhas gengivas sangram mudas, tanto colorido de pura sofreguidão é como a morte nos descampados da primavera imensa.
Para além da flor em seu perfume, há a vespa e o áspero do seu ferrão. Meu grito de dor e calma, este mesmo que vaza grosso de meus olhos, imita a voz das cigarras.
Amigo, aprenda agora que a cigarra não morre cantando.
Jamais.
Dentro dela vive uma ferida sem remédio, ela abriga no seu ventre um corte nascido de dentro, que dilacera as entranhas. No seu ventre moram medos insondáveis. E um corte que sangra alto.
Toda cigarra, como eu, morre gritando! Lívia Natália
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